sexta-feira, 8 de setembro de 2017

BARBARIDADE CURRICULAR NACIONAL BEM COMUNZINHA

Uma das mais recentes ameaças à cultura, educação e bom senso no Brasil atende pelo nome de Base Nacional Comum Curricular (BNCC).  A estrovenga curricular vem juntar-se a todo um rol de jabuticabas culturais, tais como a tomada de três pinos e o kit de primeiros socorros nos carros etc. Depois de listar alguns dos principais problemas que vejo nessa joça, vou me concentrar na discussão de apenas um, o fato de que a BNCC pode até prejudicar a formação dos brasileiros, mas terá apenas um pífio impacto sobre a a História e a Cultura em escala  global. Segue a lista com apenas alguns problemas:

Em primeiro lugar, o nome da joça parece ter sido escrito em Dilmês. Quando é preciso enfileirar uma série de adjetivos antes ou depois de um substantivo importa decidir primeiro quem qualifica quem. No caso trata-se de uma base curricular, ou seja de uma base para estabelecer parâmetros curriculares a serem obedecidos pelas escolas. Quais escolas? As escolas de todo o Brasil. Trata-se, portanto, de uma Base Curricular Nacional. E o que faz o “comum” na estrovenga? Apenas testemunha a falta de lógica de quem inventou o nome da coisa. O qualificativo “comum” pode ser compreendido de duas maneiras. A primeira delas é como “alguma coisa a ser compartilhada por todas as as escolas do País” e, portanto, nacional. Ora, se a base é nacional pressupõe-se que seja aplicável a todas as escolas do País, sendo portanto, comum a todas. Frente ao “nacional” o “comum” torna-se redundante. A segunda acepção é de “ordinário”. Acredito que tenha sido nessa acepção de vulgar, ordinário, de porcaria que o adjetivo “comum” tenha entrado no nome da BNCC. Do modo como foi concebido o nome, ou é redundante ou apenas pejorativamente qualificativo. Uma produção cultural bem comunzinha, de fato.

Em segundo lugar, a orientação teórico-metodológica da joça é arcaica e ideológica. A BNCC é inteiramente formulada a partir do romantismo pedagógico iniciado por Rousseau e seguido por Dewey, Vygotsky, Wallon, Piaget, Freire etc. A literatura é predominantemente nacional, em português e os avanços teóricos e metodológicos das ciências cognitivas nas últimas décadas são solenemente ignorados. Não se percebe um esforço para fundamentar a prática educacional nas melhores evidências empíricas disponíveis. Ao contrário, os autores partem de pressupostos indemonstrados do que consideram uma educação ideal, apenas para impor uma camisa de força ideológica ao ensino.

Em terceiro lugar, a ênfase dada aos chamados “temas transversais” sinaliza a desistência de querer ensinar qualquer coisa aos alunos que não seja ideologia. É irônico que, os mesmos “educadores” que não conseguem ensinar as crianças a ler e escrever as palavras, a interpretar textos e a fazer contas queiram utilizar as aulas de matemática para “problematizar” sobre racismo, sexismo, justiça social etc. As crianças acabam não aprendendo nem uma coisa nem outra. O produto final são gerações sucessivas de analfabetos funcionais, inábeis no manejo das letras e números mas peritos no tráfico de maconha e cocaína e no uso de fuzis, metralhadoras e bazucas. Nâo deixa de ter sua lógica. Afinal, os deficientes morais são heróis da resistência popular.

Em quarto lugar, a leitura da BNCC é reminiscente da discussão sobre o “Nóis pega os peixe” apresentada naquela pseudo-gramática que pregava o abandono do ensino da Norma Culta em Português. Ou do “Nóis não vai ser preso” do Joesley Safadão. A Norma Culta é condenada por, supostamente, representar uma forma de opressão, um aparelho ideológico de estado com a função precípua de estabelecer relações de opressão de classe, entre aqueles que a dominam e aqueles que não conseguem manejá-la. Trata-se, evidentemente, de uma injunção paradoxal. Ao mesmo tempo em que a Norma Culta é condenada por, supostamente, ser um mecanismo de dominação ideológica, o desprezo pelo seu ensino priva os alunos mais pobres justamente da única chance que teriam para subir pelo elevador social.

Finalmente, a “Alta Cultura” ou tudo que tem a ver com os bons costumes e a Civilização Ocidental também são claramente desprestigiados. O anátema lançado sobre a Civilização Ocidental segue a tendência relativista cultural iniciada pelo antropólogo Franz Boas e propagada por seus discípulos mundo afora. Nos EUA, por exemplo, alguns colleges não incluem mais Shakespeare no seu currículo porque o Bardo Inglês não passava de um macho branco, um “supremacista”.

Mas, o fato de muitos colleges norte-americanos ou a Base Curricular Nacional brasileira abandonarem a Civilização Ocidental não implica que a mesma deixe de ser cultivada ou perca sua importância em escala global. Eu me dei conta disso, lendo um texto do Gustavo Ioschpe:

“Eu tive o privilégio de estudar em boas escolas particulares. Foi só quando fui cursar uma universidade  de ponta nos Estados Unidos que entendi o quão deficiente a minha escolaridade havia sido.
“Meus colegas indianos haviam lido Shakespeare e Dante para a escola. Na minha, lemos Lima Barreto e Adolfo Caminha. Os chineses e russos tinham uma intimidade com a Matemática que lhes permitia visualizar a relação entre as equações e as formas espaciais que elas descreviam. Para mim, Matemática era só pegar lápis, papel e resolver um problema. Os dados estatísticos mostram que as deficiências da minha escola são compartilhadas por milhões de alunos de todo o país” (Ioschpe, 2012).

Os americanos e as crianças brasileiras até podem parar de estudar a História Ocidental Antiga, podem até mesmo nunca começar a ler Shakespeare ou Dante. Mas não será por causa disso que os indianos e chineses deixarão de estudar a Civilização Ocidental. Sem prejuízo à sua própria identidade cultural. Um indiano ou chinês não deixa de ser indiano ou chinês apenas por ler Shakespeare ou Dante. Tais leituras enriquecem sua formação, sem desqualificar sua própria cultura. Não existe essa antinomia.

Um outro insight pertinente que eu tive foi fazendo um curso sobre a cultura de Israel na Época Bíblica. Estima-se que apenas 1% da população de Israel naquela época fosse alfabetizada e pudesse ler a Bíblia. A leitura da Torá e sua explicação para o resto da população analfabeta era o papel dos Levitas, os filhos da Tribo de Israel que não recebeu terras.

O Talmud  de Alfred Lakos (1870-1961)

Essa situação foi herdada pela Cristandade: quem lia a Bíblia em Latim eram os padres. E perdurou até o Século XVI quando Lutero traduziu a Bíblia para o Alemão. Em poucas semanas havia edições da Bíblia nas principais cidades alemãs. Em poucos meses surgiram traduções da Bíblia nas principais línguas européias. Com isso a Bíblia e a leitura e interpretação de textos tornaram-se acessíveis a uma parcela crescente da população que não sabia Latim. Esse processo acentuou-se a partir da universalização do ensino fundamental na virada do Século XIX para o XX e culminou com o acesso universal à Alta Cultura através da Internet.

Lutero traduzindo a Bíblia no Castelo de Wartburg 1521 
(óleo sobre tela – Eugene Siberdt, 1898)

O acesso e a disponibilidade de informação cresceram de tal forma que o problema contemporâneo é justamente o de transformar informação em conhecimento ou cultura. Separar o joio do trigo. E essa é uma das principais funções da escola. Apresentar aos alunos o cardápio multicultural de forma que os mesmos possam fazer suas comparações e extrair suas próprias conclusões. Não é sonegando informação aos alunos que se “constrói o conhecimento”. Os brasileiros até podem nunca a vir a ler Shakespeare e Dante. Os brasileiros até podem gastar seu tempo na aula de matemática problematizando o sexismo. Mas isso não lhes vai ser de serventia alguma enquanto os indianos e chineses continuarem a ler Shakespeare e Dante ou a aprender matemática de forma efetiva. Enquanto houver 1% da população que saiba ler Shakespeare e Dante a Civilização Ocidental vai perdurar. Foi assim que o Judaísmo sobreviveu à escravidão no Egito e na Babilônia, aos pogroms na Rússia e ao Holocausto alemão. E os 99% restantes serão barrados do baile. Esses 99% serão condenados a permanecer como eleitorado cativo dos populistas, eternamente enganados pelos lularápios e joesleys safadões. É isso que queremos?



Referência

Ioschpe, G. (2012). O que o Brasil quer ser quando crescer? {E outros textos sobre educação e desenvolvimento}. Rio de Janeiro: Objetiva.

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