Recentemente, o Governo anunciou o fim do programa Ciência
sem Fronteiras, que financiava os estudos de alunos brasileiros de graduação e
pós-graduação no exterior. Dizem que as bolsas de pós-graduação continuarão sendo financiadas. Acho que foi
uma decisão acertada, dadas as circunstâncias e face às distorções do Ciência
sem Fronteiras real, tal como implementado pelos petralhas.
As distorções são por demais conhecidas. Alunos que foram
para o exterior sem saber falar inglês, alunos que foram estudar em Portugal (como
se esse país fosse uma fonte irradiadora de inovação científica e tecnológica.
Sem ter nada contra os patrícios, entretanto), alunos que não fizeram
absolutamente nada no seu estágio a não ser passear, fumar maconha e transar
etc. Tudo isso é público e notório.
A idéia era boa. O Ciência sem Fronteiras ideal objetivava
proporcionar uma experiência internacional não apenas aos alunos de
pós-graduação, mas também para os alunos de graduação. Esse é um objetivo pra
lá de estratégico. Quanto mais cedo a internacionalização dos pesquisadores
começa, mais resultado ela dá. O Brasil obteve resultados notáveis nas últimas
décadas através dos doutorados no exterior financiados pela CAPES, CNPq, FAPEMIG, bem
como convênios internacionais. Cresceu exponencialmente o número de parcerias
internacionais de pesquisa bem como o número de publicações em periódicos internacionais
de boa qualidade, revisados por pares e indexados.
Quem já publicou um paper em um periódico internacional sabe
o que isso representa. Por vezes se trabalha de um a dois anos revisando um
artigo. Os referees passam um pente fino e contribuem imensamente para melhorar
a qualidade do trabalho. Mas é trabalho duro. Mais duro ainda para quem não tem
experiência nem noção de como as coisas funcionam lá fora. Internacionalizar as
publicações científicas do Brasil depende da disponibilidade de pesquisadores
jovens, com sólidos conhecimentos de inglês e que entendam direitinho como é que
funciona o processo nos grandes centros de pesquisa e publicação.
Sempre fui contra a gastança desenfreada dos petralhas. Eles
agiram como se o erário fosse um manancial infinito de recursos. Deu no que
deu. A inflação voltou, junto com a recessão e o desemprego. Estamos atolados.
E vai ser bem difícil sair do buraco. Houve épocas durante o regime petralha em que quase
todos os alunos de iniciação científica do meu laboratório tinham bolsa. Uma
coisa antes nunca vista. Foi ótimo para quem se beneficiou. Foi péssimo para o
pagador de impostos e para o País. Simplesmente não poderia durar muito daquela
forma.
Apesar de sempre ter sido contra a gastança, minha
experiência com o Ciência sem Fronteiras foi ótima. Os objetivos foram
atingidos por todos os meus alunos que foram para países como EUA, Inglaterra,
França, Áustria e até mesmo Espanha e Portugal. Uma das primeiras coisas que uma moça que
foi para Portugal notou, é que lá não tem psicanálise. Outra moça que foi pra
Inglaterra me escreveu dizendo que foi somente a partir dessa experiência que ela
começou a compreender como as coisas que eu falava tinham tudo a ver.
Tenho certeza de que o investimento público nos meus alunos
que foram para o exterior mais do que recompensou. Essas pessoas são hoje pesquisadores
internacionalmente inseridos e muito bem sucedidos. O Ciência sem Fronteiras
lhes abriu as portas da ciência internacional, ensinando o caminho das pedras,
oportunizando contatos, assimilando valores, aprendendo técnicas e conceitos
inovadores, elevando o nível das suas publicações.
Muitos alunos que foram na graduação se motivaram tanto que
voltaram no doutorado e agora estão indo para pós-doutorado. O seu sucesso é
uma grande alegria. Entretanto, paira sempre a dúvida sobre quantos deles vão
retornar ao Brasil. A brain drainage é uma realidade. Mas, mesmo os alunos que
ficarem no exterior estarão contribuindo para a pesquisa no Brasil. A minha
experiência com alunos que se estabeleceram definitivamente no exterior é muito
boa também. Eles não esquecem a terrinha e não se eximem de propiciar
oportunidades, contatos e aconselhamento para os seus conterrâneos. Continuo
colaborando com alunos que foram para outros centros e não voltaram. Os brasileiros que eu conheço e que foram para fora não viraram as costas para o Brasil. Ao contrário. Continuam sendo parceiros ativos, contribuindo talvez mais ainda para a pesquisa em nosso País.
As minhas atividades de pesquisa também se beneficiaram
muito com os alunos que foram para o exterior. Através deles aprendi coisas
novas, adquiri novas tecnologias, fiz contatos e estabeleci parcerias com
pesquisadores internacionais, tornei o nosso trabalho internacionalmente
conhecido. Uma das coisas legais que estamos fazendo são as bancas de mestrado e
doutorado com examinadores internacionais através do Skype. Isso é um barato, possibilitado
pela tecnologia mas também pela disponibilidade de alunos que sabem ler e
escrever em inglês e sabem como se comportar no meio científico internacional.
Infelizmente, houve distorções e agora o Ciência sem
Fronteiras está acabando. Toma que, de fato, eles continuem financiando as bolsas de doutorado. É necessário, mas é uma pena. A ocorrência dessas distorções
era previsível em função da bagunça que são as universidades públicas
brasileiras. Não existe meritocracia. Nâo existe uma avaliação rigorosa do
desempenho de professores e alunos. Tanto faz se o cara trabalha nada, um pouco
ou muito. O salário é o mesmo. E o PT introduziu mais uma distorção que foi a
inserção da titularidade docente como parte integrante da carreira.
Antigantemente a promoção para professor titular dependia de um concurso
público aberto. Hoje em dia o camarada pode virar professor titular apenas por
tempo de serviço. Não importa o que ele faça ou deixe de fazer. Existe todo um
sistema de avaliação do desempenho. Mas o mesmo não funciona porque não tem
autonomia. As avaliações são realizadas por pares que não têm isenção para
fazer um julgamento rigoroso do desempenho dos próprios colegas e, portanto, amigos.
O negócio é feito para não funcionar. Surprende que funcione
tão bem até. Apesar dos pesares, as universidades públicas ainda são as
melhores no Brasil. O salário é baixo, as universidades públicas foram
aparelhadas pela esquerda politicamente correta etc., mas eu não trocaria a
minha universidade por uma faculdade particular.
Essas dificuldades e distorções inevitavelmente levantam a
questão do papel do estado na educação superior. Uma distorção que existe no
Brasil é que o estado cuida mais da educação superior do que da educação
básica. O ENEM e a criação de múltiplas novas instituições federais de ensino
que funcionam precariamente reflete exatamente isso. Uma concepção
megalomaníaca ou oportunista do ensino superior como veículo de ascensão
social, negligenciando a necessidade de uma base curricular sólida no ensino fundamental bem como o ensino técnico como modelo de qualificação profissional. De fato, tradicionalmente, o ensino superior junto com o Exército e a
Igreja sempre funcionaram como eficientes elevadores sociais. Mas de que
adiante colocar na universidade um bando de analfabetos? Ou dar o nome de
universidades a instituições que não preenchem os requisitos mais básicos?
Há muitos anos, as universidades públicas têm sido a única
opção para jovens que desejam perseguir uma carreira de pesquisa. O salário é
baixo. Lá pelas tantas o camarado ganha muito menos do que deveria,
considerando sua qualificação. Por outro lado, as condições de trabalho
permitem a pesquisa - o que não acontece nas instituições privadas -, o alunado
é constituído pelas pessoas mais brilhantes de cada coorte da população e a
aposentadoria, por enquanto, é integral. As vantagens acabem compensando.
Mas será que o estado precisa se meter na educação superior
e pesquisa? Uma resposta óbvia é que a educação superior e a pesquisa são
estratégicas e se o estado não cuidar disso, a iniciativa privada não o fará.
Existem e é crescente o número de boas instituições privadas de ensino. Mas a
pesquisa é mais rara ainda nas instituições privadas. O financiamento privado
de pesquisa é praticamente inexistente no Brasil.
Não sei ao certo por quê as instituições privadas não
investem em pesquisa no Brasil. A resposta mais óbvia parece ser que a pesquisa
não dá retorno financeiro imediato. Um
contra-argumento seria que as instituições privadas não fazem pesquisa porque o
estado se adonou do campinho. Como o estado financia, os pesquisadores se
acomoadam e os empresários aproveitam e não fazem sua parte.
Cresce em todo o mundo, inclusive no Brasil, a posição
político-filosófico-econômica libertária, a qual defende a abolição do estado.
Casos como o Ciência sem Fronteira sugerem que, de fato, o estado monopoliza e distorce
as coisas, impedindo o desenvolvimento econômico.
Entretanto, o libertarianismo me parece muito utópico. Tenho
dúvidas quanto à viabilidade de uma sociedade sem estado. As utopias são
perigosas. Geralmente terminam em convulsão social e genocídio. A posição
conservadora é mais prudente: redução do tamanho do estado ao mínimo
estratégico e necessário. As tradições precisam se adaptar de modo flexível
para que não pereçam, mas mudanças bruscas podem ser catastróficas.
Essas reflexões espelham a minha perspectiva pessoal.
Compreendo que o Ciência sem Fronteiras real deveria acabar. Mas lamento a
morte anunciada do Ciência sem Fronteiras ideal. Sou assaltado por dúvidas
quanto ao papel do estado na educação superior e na pesquisa. E, portanto, quanto ao sentido da minha própria carreira. Quando eu entrei
na universidade, minhas posições políticas eram social-democratas. Eu
acreditava no papel do estado. Os acontecimentos das últimas décadas foram
muito instrutivos, no sentido de desmontar essa crença. Refiro-me à degradação do debate intelectual na universidade,
à restrição da liberdade de pensamento e expressão, à falta de meritocracia, à
falta de discernimento quanto à validade da pesquisa científica e sua diferenciação de outros tipos de atividade intelectual, ao abandono pela
universidade do ideal de busca do conhecimento e da verdade em favor do
ativismo político etc. Tudo isso fez com que eu fosse me tornando cada vez mais
descrente do estado. As alternativas são o libertarianismo e o conservadorismo.
Me inclino mais pelo último.
A morte do Ciência sem Fronteiras tem um sabor
de retrocesso. O Ciência sem Fronteiras permitiu que uma coorte de estudantes,
pesquisadores e professores brasileiros se internacionalizasse. No meu caso e
no dos meus alunos sortudos, acho que o processo é irreversível. Mas, e os alunos que vêm pela frente? Fico com dó
das gerações futuras que perderão essa oportunidade e frustrado por ver uma porta se fechando. Daqi pra frente teremos que encontrar
outros caminhos, face à malversação e às adversidades que o País enfrenta. Existem tais caminhos alternativos? Se a
morte do Ciência sem Fronteiras for definitiva, precisamos evoluir para um
outro modelo. Espero que a morte do Ciência sem Fronteiras real e financiado
pelo estado não tenha matado o Ciência sem Fronteiras ideal. Alguém tem
experiência em obter financiamento para pesquisa no Brasil com a iniciativa
privada?
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