domingo, 2 de abril de 2017

A FARRA DO CIÊNCIA SEM FRONTEIRAS FOI BOA DEMAIS ENQUANTO DUROU

Recentemente, o Governo anunciou o fim do programa Ciência sem Fronteiras, que financiava os estudos de alunos brasileiros de graduação e pós-graduação no exterior. Dizem que as bolsas de pós-graduação continuarão sendo financiadas. Acho que  foi uma decisão acertada, dadas as circunstâncias e face às distorções do Ciência sem Fronteiras real, tal como implementado pelos petralhas.



As distorções são por demais conhecidas. Alunos que foram para o exterior sem saber falar inglês, alunos que foram estudar em Portugal (como se esse país fosse uma fonte irradiadora de inovação científica e tecnológica. Sem ter nada contra os patrícios, entretanto), alunos que não fizeram absolutamente nada no seu estágio a não ser passear, fumar maconha e transar etc. Tudo isso é público e notório.

A idéia era boa. O Ciência sem Fronteiras ideal objetivava proporcionar uma experiência internacional não apenas aos alunos de pós-graduação, mas também para os alunos de graduação. Esse é um objetivo pra lá de estratégico. Quanto mais cedo a internacionalização dos pesquisadores começa, mais resultado ela dá. O Brasil obteve resultados notáveis nas últimas décadas através dos doutorados no exterior financiados pela CAPES, CNPq, FAPEMIG, bem como convênios internacionais. Cresceu exponencialmente o número de parcerias internacionais de pesquisa bem como o número de publicações em periódicos internacionais de boa qualidade, revisados por pares e indexados.

Quem já publicou um paper em um periódico internacional sabe o que isso representa. Por vezes se trabalha de um a dois anos revisando um artigo. Os referees passam um pente fino e contribuem imensamente para melhorar a qualidade do trabalho. Mas é trabalho duro. Mais duro ainda para quem não tem experiência nem noção de como as coisas funcionam lá fora. Internacionalizar as publicações científicas do Brasil depende da disponibilidade de pesquisadores jovens, com sólidos conhecimentos de inglês e que entendam direitinho como é que funciona o processo nos grandes centros de pesquisa e publicação.

Sempre fui contra a gastança desenfreada dos petralhas. Eles agiram como se o erário fosse um manancial infinito de recursos. Deu no que deu. A inflação voltou, junto com a recessão e o desemprego. Estamos atolados. E vai ser bem difícil sair do buraco. Houve épocas durante o regime petralha em que quase todos os alunos de iniciação científica do meu laboratório tinham bolsa. Uma coisa antes nunca vista. Foi ótimo para quem se beneficiou. Foi péssimo para o pagador de impostos e para o País. Simplesmente não poderia durar muito daquela forma.

Apesar de sempre ter sido contra a gastança, minha experiência com o Ciência sem Fronteiras foi ótima. Os objetivos foram atingidos por todos os meus alunos que foram para países como EUA, Inglaterra, França, Áustria e até mesmo Espanha e Portugal. Uma das primeiras coisas que uma moça que foi para Portugal notou, é que lá não tem psicanálise. Outra moça que foi pra Inglaterra me escreveu dizendo que foi somente a partir dessa experiência que ela começou a compreender como as coisas que eu falava tinham tudo a ver.

Tenho certeza de que o investimento público nos meus alunos que foram para o exterior mais do que recompensou. Essas pessoas são hoje pesquisadores internacionalmente inseridos e muito bem sucedidos. O Ciência sem Fronteiras lhes abriu as portas da ciência internacional, ensinando o caminho das pedras, oportunizando contatos, assimilando valores, aprendendo técnicas e conceitos inovadores, elevando o nível das suas publicações.

Muitos alunos que foram na graduação se motivaram tanto que voltaram no doutorado e agora estão indo para pós-doutorado. O seu sucesso é uma grande alegria. Entretanto, paira sempre a dúvida sobre quantos deles vão retornar ao Brasil. A brain drainage é uma realidade. Mas, mesmo os alunos que ficarem no exterior estarão contribuindo para a pesquisa no Brasil. A minha experiência com alunos que se estabeleceram definitivamente no exterior é muito boa também. Eles não esquecem a terrinha e não se eximem de propiciar oportunidades, contatos e aconselhamento para os seus conterrâneos. Continuo colaborando com alunos que foram para outros centros e não voltaram. Os brasileiros que eu conheço e que foram para fora não viraram as costas para o Brasil. Ao contrário. Continuam sendo parceiros ativos, contribuindo talvez mais ainda para a pesquisa em nosso País.

As minhas atividades de pesquisa também se beneficiaram muito com os alunos que foram para o exterior. Através deles aprendi coisas novas, adquiri novas tecnologias, fiz contatos e estabeleci parcerias com pesquisadores internacionais, tornei o nosso trabalho internacionalmente conhecido. Uma das coisas legais que estamos fazendo são as bancas de mestrado e doutorado com examinadores internacionais através do Skype. Isso é um barato, possibilitado pela tecnologia mas também pela disponibilidade de alunos que sabem ler e escrever em inglês e sabem como se comportar no meio científico internacional.

Infelizmente, houve distorções e agora o Ciência sem Fronteiras está acabando. Toma que, de fato, eles continuem financiando as bolsas de doutorado. É necessário, mas é uma pena. A ocorrência dessas distorções era previsível em função da bagunça que são as universidades públicas brasileiras. Não existe meritocracia. Nâo existe uma avaliação rigorosa do desempenho de professores e alunos. Tanto faz se o cara trabalha nada, um pouco ou muito. O salário é o mesmo. E o PT introduziu mais uma distorção que foi a inserção da titularidade docente como parte integrante da carreira. Antigantemente a promoção para professor titular dependia de um concurso público aberto. Hoje em dia o camarada pode virar professor titular apenas por tempo de serviço. Não importa o que ele faça ou deixe de fazer. Existe todo um sistema de avaliação do desempenho. Mas o mesmo não funciona porque não tem autonomia. As avaliações são realizadas por pares que não têm isenção para fazer um julgamento rigoroso do desempenho dos próprios colegas e, portanto, amigos.

O negócio é feito para não funcionar. Surprende que funcione tão bem até. Apesar dos pesares, as universidades públicas ainda são as melhores no Brasil. O salário é baixo, as universidades públicas foram aparelhadas pela esquerda politicamente correta etc., mas eu não trocaria a minha universidade por uma faculdade particular.

Essas dificuldades e distorções inevitavelmente levantam a questão do papel do estado na educação superior. Uma distorção que existe no Brasil é que o estado cuida mais da educação superior do que da educação básica. O ENEM e a criação de múltiplas novas instituições federais de ensino que funcionam precariamente reflete exatamente isso. Uma concepção megalomaníaca ou oportunista do ensino superior como veículo de ascensão social, negligenciando a necessidade de uma base curricular sólida no ensino fundamental bem como o ensino técnico como modelo de qualificação profissional. De fato, tradicionalmente, o ensino superior junto com o Exército e a Igreja sempre funcionaram como eficientes elevadores sociais. Mas de que adiante colocar na universidade um bando de analfabetos? Ou dar o nome de universidades a instituições que não preenchem os  requisitos mais básicos?

Há muitos anos, as universidades públicas têm sido a única opção para jovens que desejam perseguir uma carreira de pesquisa. O salário é baixo. Lá pelas tantas o camarado ganha muito menos do que deveria, considerando sua qualificação. Por outro lado, as condições de trabalho permitem a pesquisa - o que não acontece nas instituições privadas -, o alunado é constituído pelas pessoas mais brilhantes de cada coorte da população e a aposentadoria, por enquanto, é integral. As vantagens acabem compensando.

Mas será que o estado precisa se meter na educação superior e pesquisa? Uma resposta óbvia é que a educação superior e a pesquisa são estratégicas e se o estado não cuidar disso, a iniciativa privada não o fará. Existem e é crescente o número de boas instituições privadas de ensino. Mas a pesquisa é mais rara ainda nas instituições privadas. O financiamento privado de pesquisa é praticamente inexistente no Brasil.

Não sei ao certo por quê as instituições privadas não investem em pesquisa no Brasil. A resposta mais óbvia parece ser que a pesquisa não dá retorno financeiro imediato.  Um contra-argumento seria que as instituições privadas não fazem pesquisa porque o estado se adonou do campinho. Como o estado financia, os pesquisadores se acomoadam e os empresários aproveitam e não fazem sua parte.

Cresce em todo o mundo, inclusive no Brasil, a posição político-filosófico-econômica libertária, a qual defende a abolição do estado. Casos como o Ciência sem Fronteira sugerem que, de fato, o estado monopoliza e distorce as coisas, impedindo o desenvolvimento econômico.

Entretanto, o libertarianismo me parece muito utópico. Tenho dúvidas quanto à viabilidade de uma sociedade sem estado. As utopias são perigosas. Geralmente terminam em convulsão social e genocídio. A posição conservadora é mais prudente: redução do tamanho do estado ao mínimo estratégico e necessário. As tradições precisam se adaptar de modo flexível para que não pereçam, mas mudanças bruscas podem ser catastróficas.

Essas reflexões espelham a minha perspectiva pessoal. Compreendo que o Ciência sem Fronteiras real deveria acabar. Mas lamento a morte anunciada do Ciência sem Fronteiras ideal. Sou assaltado por dúvidas quanto ao papel do estado na educação superior e na pesquisa. E, portanto, quanto ao sentido da minha própria carreira. Quando eu entrei na universidade, minhas posições políticas eram social-democratas. Eu acreditava no papel do estado. Os acontecimentos das últimas décadas foram muito instrutivos, no sentido de desmontar essa crença. Refiro-me à degradação do debate intelectual na universidade, à restrição da liberdade de pensamento e expressão, à falta de meritocracia, à falta de discernimento quanto à validade da pesquisa científica e sua diferenciação de outros tipos de atividade intelectual, ao abandono pela universidade do ideal de busca do conhecimento e da verdade em favor do ativismo político etc. Tudo isso fez com que eu fosse me tornando cada vez mais descrente do estado. As alternativas são o libertarianismo e o conservadorismo. Me inclino mais pelo último.

A morte do Ciência sem Fronteiras tem um sabor de retrocesso. O Ciência sem Fronteiras permitiu que uma coorte de estudantes, pesquisadores e professores brasileiros se internacionalizasse. No meu caso e no dos meus alunos sortudos, acho que o processo é irreversível. Mas, e os alunos que vêm pela frente? Fico com dó  das gerações futuras que perderão essa oportunidade e frustrado por ver uma porta se fechando. Daqi pra frente teremos que encontrar outros caminhos, face à malversação e às adversidades que o País enfrenta. Existem tais caminhos alternativos? Se a morte do Ciência sem Fronteiras for definitiva, precisamos evoluir para um outro modelo. Espero que a morte do Ciência sem Fronteiras real e financiado pelo estado não tenha matado o Ciência sem Fronteiras ideal. Alguém tem experiência em obter financiamento para pesquisa no Brasil com a iniciativa privada?

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