A ideologia de gênero é uma estrovenga teórica hetero- e
auto-contraditória. Trata-se de uma articulação teórica com a finalidade de
justificar políticas de favorecimento de determinadas “minorias” sexuais.
Existem ao menos duas espécies de ideologia de gênero: a feminista e a trans.
Elas são contraditórias entre si e autocontraditórias.
A ideologia de gênero feminista se baseia na afirmação de
Simone de Beauvoir de que ninguém nasce mulher. A pessoa torna-se mulher em função
da experiência de vida. Essa afirmação se baseia em uma distinção entre sexo e
gênero. Sexo seria uma categoria biológica, relacionada por exemplo com a funcionalidade
reprodutiva do indivíduo. O gênero, por outro lado, é uma categoria social
pertinente ao comportamento e ao papel social desempenhado.
De acordo com o feminismo de gênero o sexo é irrelevante, o
que faz a identidade da pessoa é o
gênero, o qual consiste de uma construção social. O gênero é uma construção
social, sendo circunscrito pela cultura e, portanto, relativo. Como o que
importa é o gênero e como este é socialmente construído e descolado da
realidade biológica, os papéis de gênero podem e devem ser transformados no
sentido de uma busca da liberação das mulheres oprimidas pelo patriarcado.
Apesar de se pretender relativista, ou justamente por causa
disso, o feminismo de gênero representa uma forma de determinismo cultural
absoluto. Os papéis de gênero são absolutamente desprendidos de quaisquer
constrangimentos biológicos. Trata-se do império do constrangimento social, uma
vez que a experiência individual pouco conta na definição da identidade. Já que
essa é uma construção social.
O feminismo de gênero é auto-contraditório. É relativista
por um lado, mas justamente por causa disso acaba virando absolutista social. O
feminismo de gênero almeja realizar as
fantasias de pessoas frustradas com seus papéis de gênero, mas ao mesmo tempo
nega qualquer papel para a experiência individual na construção da identidade.
Uma vez que se trata de uma construção social, a identidade de gênero é sobredeterminada
pela cultura. No afã de satisfazer os caprichos do indivíduo, o feminismo de
gênero acaba furtando o status de agente ao próprio indivíduo.
A vertente trans da ideologia de gênero é não apenas
contraditória com o feminismo de gênero mas também consigo mesma. Se o
feminismo de gênero representa uma forma de determinismo social absoluto, o
transgenderismo situa-se no pólo oposto. Ou seja, trata-se de uma forma de
determinismo biológico absoluto.
O transgenderismo trabalha com a hipótese de que a disforia
de gênero, ou seja o desconforto que cerca de 0,6% dos indivíduos sentem em relação ao
próprio sexo, resulta do fato de que o indivíduo teria um “cérebro de um sexo em
um corpo de outro sexo”. A hipótese em si não é absurda. As evidências
biológicas indicam que há um dimorfismo sexual na espécie humana, inclusive no
cérebro humano. As evidências indicam, entretanto, que o processo de
diferenciação sexual tanto do cérebro quanto do organismo como um todo é muito
complexo, ocorrendo de forma epigenética e probabilística sob a influência de
fatores genéticos, hormonais e
experienciais. Falar, p. ex., de um “cérebro feminino em um corpo masculino”ou
vice-versa é uma simplificação grosseira. Daí a inferir que o corpo pode ou deve
ser transformado para se adequar ao cérebro é uma insanidade.
As diferenças neuropsicológicas entre homens e mulheres são
por demais conhecidas. Realmente, os cérebros de homens e de mulheres diferem
sob diversos aspectos. O cérebro da mulher experimenta, p. ex., modificações
anátomo-funcionais no hipotálamo relacionadas ao ciclo menstrual, à gestação,
parto, amamentação etc. A oxitocina é o hormônio preponderante dos vínculos afetivos
femininos, sendo no homem o seu papel reduzido e realçada a função da arginina-vasopressina.
Os homens e as mulheres diferem também do ponto de vista
cognitivo e quanto a características de personalidade. As habilidades espaciais
alocêntricas de homens costumam ser maiores. As mulheres têm mais habilidades
verbais. A agressividade e competitividade feminina e masculina são
diferenciadas. As mulheres são mais empáticas e mais motivadas para o carinho e
o cuidado etc.
Mas essas diferenças neuropsicológicas entre homens e mulheres
não deixam de se revestir de um caráter estereotipado. Correspondem mais a
tipos ideais do que à realidade nuançada. P. ex., a média de QI de homens e
mulheres é igual. As diferenças entre o QI verbal superior nas mulheres e o QI
não-verbal superior nos homens são muito pequenas e somente adquirem
significância estatística em amostras gigantescas. A variabilidade populacional
dessas características é muito grande, sendo maior nos homens e menor das
mulheres. Adicionalmente, a variabilidade intrasexual é maior do que a
variabilidade intersexual. Ou seja, existe uma sobreposição entre as
distribuições de características neuropsicológicas de homens e mulheres. Há homens
mais “femininos” e mulheres mais “masculinas”.
Todos esses fatos indicam que, realmente, as diversidades
sexuais e de gênero têm um caráter estereotipado. O que não significa que elas
sejam desprovidas de significado na economia cognitiva e social. É prudente,
entretanto, não fundamentar decisões pessoais e políticas públicas em
estereótipos que constituem apenas representações grosseiras e aproximadas de
uma realidade muito mais nuançada.
Tem um exemplo adicional que é matador. A testosterona é
produzida em maior quantidade em homens e se associa a diversas características
comportamentais masculinas, tais como agressividade e habilidades visoespaciais.
Mas a testosterona também regula funções importantes na mulher, tais como o
desejo e a iniciativa sexual.
Existem casos-limites que podem ser usados para ilustrar as
nuances e indeterminismos subjacentes à diferenciação sexual do cérebro e do
organismo. Estou com preguiça agora de fazer uma revisão bibliográfica. Cito
apenas alguns casos, sob pena de cometer enganos brutais. O que importa é o
sentido geral.
O biólogo holandês Dick Swaab descobriu um gene no
hipotálamo de ratos que influencia o comportamento sexual. Polimorfismos desse
gene se associam a variabilidade no comportamento sexual. Um dos genótipos se
caracteriza por comportamento heterossexual ou homossexual masculino dependendo
do nível de iluminação no ambiente. Esse resultado é sensacional porque ilustra
tanto uma regulação genética quanto ambiental de um comportamento bastante
complexo que é o coito.
O cortisol é um precursor metabólico da síntese de
androsteróides. Existem duas situações clinicas associadas a aumento dos níveis
de cortisol no feto: a síndrome de hiperplasia adrenal congênita e o tratamento
da mãe com corticoesteróides durante a gestação. Nesses casos, as meninas
apresentam um risco de apresentar comportamentos caracterizados como
tomboyismo. Ou seja, demonstrar preferência por brincadeiras e papéis de gênero
típicos do sexo masculino. Esses casos ilustram a discrepância que pode haver
entre o sexo geneticamente definido e o comportamento fortemente influenciado
pelos hormônios.
A importância dos hormônios sexuais na diferenciação do
comportamento de gênero é ilustrada também pela síndrome do testículo
feminilizante ou insensibilidade congênita aos andrógeno. Nessa doença
genética, a pessoa é cromossomicamente masculina, os testículos produzem
testosterona, mas um defeito nos receptores hormonais faz com que a testosterona
não atue da forma devida nos tecidos e não ocorra a diferenciação sexual
masculina. O resultado é uma pessoa que é geneticamente do sexo masculino mas
cujo cérebro e comportamento foram hormonalmente fortemente diferenciados para
o sexo feminino. Fenotipicamente, a pessoa é uma mulher que pode ter corpo e desejo de mulher.
Só que é uma mulher com cariótipo 46XY. Quer
dizer, o cromossoma Y não está com essa bola toda. Seus efeitos dependem de uma
série de influências ambientais, inclusive hormônios fetais. Muitos desses casos
apresentam intersexo, ou seja, genitália ambígua. Nesses casos a recomendação
médica é pela feminilização.
O gene dimórfico do Swaab, os efeitos dos corticosteróides
no feto feminino e a síndrome do testículo feminilizante indicam que a hipótese do “cérebro feminino em corpo
masculino” ou vice-versa para explicar a disforia de gênero não é um absurdo em
si, apenas uma esterotipação de uma realidade muito complexa. As evidências
sugerem que o cérebro de um homem geneticamente definido pode desenvolver diversas características dimórficas
femininas. Mas isso não é um fenômeno tudo ou nada. Daí não se pode depreender
que ele tenha um “cérebro feminino”.
O conhecimento da variabilidade psicobiológica inter- e,
principalmente, intrasexual indica que essa noção de cérebro feminino ou
masculino representa tipos ideais. Esses tipos ideais são como a média e o
desvio-padrão estatísticos. São abstrações que não existem na realidade
idiográfica. A variabilidade psicobiológica intrasexual é tão grande que fica
muito difícil afirmar que uma pessoa tenha um cérebro de um sexo ou de outro.
Se é que isso existe. De mais a mais, biologia não é destino. Ou seja, a experiência de vida também conta, e muito. A
partir do fato de que uma pessoa tem mais ou menos características cerebrais ou
comportamentais do sexo oposto não se pode concluir que ela possa ou precise
mudar de sexo.
O feminismo e o transgenderismo são, portanto,
contraditórios entre si e auto-contraditórias. O feminismo de gênero é
absolutista social e o transgenderismo absolutista genético. Ambos são
auto-contraditórios porque, a pretexto de compensar uma frustração ou
satisfazer um desejo subjetivo, retiram da pessoa toda e qualquer possibilidade
de individuação subjetiva. Ou seja, de agência. No caso do feminismo o
indivíduo se transforma em uma vítima da cultura e no caso do transgenderismo
em uma vítima da biologia.
Ambos, feminismo de
gênero e transgenderismo, contrastam com a concepção científica da
diferenciação sexual nos seus diversos níveis: genético e ambiental. A
concepção científica contemporânea é de que o desenvolvimento humano ocorre de
forma epigenética. Ou seja, depende de interações muito complexas entre
múltiplas influências genéticas e experienciais. Os hormônios fetais constituem
um fator ambiental que desempenha um papel importante no caso. O feminismo de
gênero nega o papel da biologia e o transgenderismo nega o papel do ambiente. A
biologia, ao contrário, preocupa-se em compreender como essas diversas formas
de influência resultam no dimorfismos anatômico, funcional e comportamental
entre os sexos.
Tudo isso não significa que não existam pessoas com disforia
de gênero e que elas não mereçam respeito e cuidado. Uma analogia pode ser
feita entre a disforia de gênero e o transtorno de identidade/integridade do
corpo (Giummarra et al., 2011). Nesses casos, uma pessoa pode p. ex., solicitar
atendimento médico porque deseja que o cirurgião lhe ampute um membro. A pessoa
tem a sensação de que o membro não lhe pertença e deseja amputá-lo. Esses
casos, felizmente, são raros mas existem. O que os médicos devem fazer? Amputar
o membro que gera a disforia?
A base biológica do transtorno de identidade/integridade do
corpo não é bem conhecida. Mas deve existir. Uma hipótese é que haja algum tipo
de disfunção nas redes neurais que sustentam as diversas representações
corporais, principalmente em circuitos parietofrontais e na ínsula do
hemisfério direito. Mas o fato de que uma disforia em relação a um membro possa
ter uma base neurobiológica justifica que o cirurgião realize uma amputação?
Da mesma forma, a base neurobiológica da disforia de gênero
não é bem conhecida. Mas deve existir, apesar de que há razões para crer que
essa idéia de um cérebro de um sexo no corpo do sexo oposto representar apenas
uma estereotipação de uma realidade bem mais complexa. Mas o fato de a disforia
de gênero eventualmente ter uma base biológica é razão suficiente para indicar
cirurgias e/ou tratamentos hormonais para mudança de sexo?
E caso essas cirurgias e tratamentos hormonais eventualmente
se justifiquem, quais serão os seus efeitos? Elas realmente atingirão seus
objetivos de propiciar um corpo congruente com a identidade sexual? Quais são as conseqüências desses tratamentos
para o bem-estar da pessoa? E se a pessoa arrepender-se da mudança de sexo?
Quem deve financiar esses tratamentos? Qual é a prevalência real da disforia de
gênero que justifica a atenção que vem recebendo da opinião pública? Por que as
crianças precisam aprender sobre isso na escola? É eticamente aceitável
realizar cirurgias de mudança de sexo em crianças e jovens confusos quanto à
própria identidade sexual?
Essas todas são questões que permanecem sem resposta. O
debate está emocionalmente tão carregado que desperta suspeição quanto aos
dados apresentados e aos interesses subjacentes dos partidários e adversários
da ideologia de gênero. Uma visão equilibrada sobre o assunto foi apresentada por Mayer e McHugh (2016
- o artigo está disponível gratuitamentena internet), dois pesquisadores da Universidade de Johns Hopkins, os quais
fizeram uma extensa revisão de centenas de trabalhos científicos. A partir dessa
ampla da revisão da literatura é possível concluir que se sabe muito pouco
sobre o assunto. E o pouco que se sabe não justifica as intervenções radicais,
médicas e sociais, que estão sendo propostas por alguns grupos de lobby.
Voltamos então novamente à questão: Quais são os interesses
subjacentes à atenção que o assunto tem recebido na mídia e à insistência com
que a ideologia de gênero procura se impor à opinião pública que,
majoritariamente, a rejeita?
Eu só consigo encontrar uma resposta a essa questão no
pensamento de Nietzsche. O que está por trás do escarcéu todo que está sendo
feito com essa história, tratando-a como se fosse o problema mais premente da
Humanidade, é a frustração e o ressentimento. Frustração porque a realidade não
corresponde aos desejos da pessoa. Ressentimento porque outras pessoas não
experimentam esses mesmos sentimentos de frustração e cuidam da própria vida.
Para falar
psicanaliticamente, o problema parece consistir de um narcisismo
exacerbado, uma recusa a aceitar o princípio da realidade, uma tentativa de
transformar a realidade de modo a adequá-la ao próprio desejo. Mas, se o desejo
é do campo do subjetivo, o que justifica que o mundo precise se adequar a ele?
O que as outras pessoas tem a ver com a história? Por que as pessoas que não
concordam com a ideologia de gênero devem ser criminalizadas como “machistas”
ou “transfóbicas”? E, principalmente, está certo o que estão tentando fazer com
as nossas crianças nas escolas que adotam a ideologia de gênero como diretriz
curricular?
Referências
Giummarra,
M. L., Bradshaw, J. L., Nicholls, M. E. R.,. Hilti, L. M. & Brugger, P.
(2011). Body integrity identity disorder: deranged body processing, right
fronto-parietal dysfunction, and phenomenological experience of body
incongruity. Neuropsychological Review, 21, 320-333.
Mayer, L. S. & McHugh, P. R. (2016). Sexuality and gender. Findings from the biological, psychological, and social sciences.
Atlantis, 50, 4-143.
O problema é que hoje vale a auto-declaração anterior à puberdade pra se iniciar o bloqueio da puberdade com hormonios...
ResponderExcluirObservação excelente e exemplifica muito bem a questão da ideologia de gênero.
ResponderExcluirPrezado Prof. Vitor Haase,
ResponderExcluirAs políticas de gênero surgem como um passo evolutivo do discurso socialista.
Na sua origem, o socialismo baseava-se na luta de classes: burguesia x proletariado.
O capitalismo, porém, teve o condão de elevar o nível de vida dos operários e, já no início do século passado, os operários (proletários) haviam-se “aburguesado”.
O discurso dos socialista sobre as minorias oprimidas continuaria, mas agora com as novas vítimas do sistema capitalista opressor: as mulheres, os negros, os gays, os índios, os sem-terra e “tutti quanti”.
O ponto central de todo o discurso socialista é a cultura ocidental (filosofia greco-romana e cultura judaico-cristã). Proletários, mulheres, gays, minorias raciais, todos são apenas pretextos políticos para a “revolução cultural”.
No Brasil, Gramsci foi e continua sendo o grande arquiteto da nova cultura que vem sendo edificada, de cima para baixo, pela mídia e, mais recentemente, pelas escolas e pelo Judiciário.
Parabéns pelo brilhante artigo!
Professor Vitor Haaze! Que maravilha de texto. Sou aluno da UFMG e, na busca de compreender as razões pelas quais a Ideologia de Gênero tem sido tão ferozmente dissipada, é muito esclarecedor textos tão coerentes e embasados como esse. Muito Obrigado.
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