Segundo o Conjur,
o ministro Edson Fachin considerou que proibir gays de doar sangue resulta em
um tratamento desigual e desrespeitoso com os homossexuais, baseado no
preconceito e no desconhecimento sobre os fatores de risco a que o doador foi
exposto, caracterizando flagrante inconstitucionalidade. Esse voto foi
proferido no STF por ocasião de uma ADI interposta contra uma portaria do Ministério
da Saúde proibindo a doação de sangue por gays.
O que pensar disso? Acho que aí temos uma clássica situação
de conflito de interesses éticos ou direitos. De um lado, o interesse e o
direito dos gays terem tratamento isonômico pelo estado. Do outro lado, há o
interesse maior em preservar a saúde da população. Qual deve ser o interesse
preponderante?
Será que esse “tratamento desigual” proposto por uma
portaria do Ministério da Saúde é motivado puramente por “preconceito e
desconhecimento”? Parece pouco provável que os técnicos do Ministério da Saúde
sejam “preconceituosos e ignorantes”. Será que eles não tomaram essa decisão em
função do conhecimento, da preocupação e da obrigação de ofício que têm com a saúde da população?
Como eu não quero ser nem “preconceituoso” nem “desconhecedor”
dos assuntos sobre os quais preciso formar uma opinião como cidadão, fui me
informar. A primeira coisa que fiz foi uma busca na PubMed tentando responder a
algumas perguntas. Tive o cuidado de procurar por revisões sistemáticas,
sintetizando os resultados de todas as pesquisas existentes sobre o assunto.
Os homossexuais e bissexuais masculinos ou “homens que fazem
sexo com homens” ainda constituem um grupo de risco para infecção por AIDS? A
resposta é afirmativa, tanto no Brasil (Malta et al., 2010) quanto globalmente
(Meng et al., 2015).
O risco de contaminação por AIDS em sangue doado por homossexuais
e bissexuais masculinos ou “homens que fazem sexo com homens” é alto? Sim, é
muito alto, tem aumentado e se relaciona ao coito anal (Lu et al., 2015).
De posse dessas informações eu me lembrei de duas histórias.
A primeira delas foi a polêmica causada há algumas semanas quando se descobriu
que verbas estatais haviam financiado uma dissertação (Barreto, 2012) e uma
tese de doutorado (Barreto, 2016) nas quais o autor descrevia o comportamento
promíscuo da cena gay carioca.
É interessante as voltas que o mundo dá. Na época várias
pessoas questionaram se era adequado financiar esse tipo de pesquisa com verbas
públicas. Eu acho que não se pode estabelecer censura à pesquisa e muito menos
é possível estabelecer critérios rígidos quanto ao que pode ou que não pode ser
financiado. Simplesmente porque não se pode antecipar quando e se uma pesquisa
será útil ou não.
O problema com a pesquisa não diz respeito tanto ao fato de ter sido
realizada ou não, financiada ou não com dinheiro público. O problema é que o
autor não respeitou as normas de ética na pesquisa com seres humanos. Tudo leva
a crer que ele não aprovou sua pesquisa previamente em um comitê de ética em
pesquisa e também que ele não se identificou como pesquisador no momento em que
coletava seus dados. Ao menos não consta nem na dissertação ou tese qualquer
parecer de um comitê de ética aprovando a pesquisa. Isso é grave.
Mas a utilidade da pesquisa restou evidente. Um paralelo
pode ser feito com as técnicas de ressuscitação de pessoas congeladas
desenvolvidas pelos nazistas da forma mais vil e abjeta. O dilema ético com essse tipo de pesquisa é:
Pode-se usar informação obtida por meios criminosos ou questionáveis? O
problema com a informação é que uma vez disponível, fica difícil fazer de conta
que ela não existe. A ignorância exige, nesse caso, um esforço ativo de repressão da informação. Frente à acusação de que os técnicos do Ministério da Saúde
estariam sendo “preconceituosos e ignorantes” ficou claro de que não se trata
nada disso. Na verdade os técnicos do Ministério conhecem muito bem o
comportamento e os riscos da população-alvo da portaria.
Ironicamente, a pesquisa que causou tanta polêmica e que foi
conduzida com métodos eticamente questionáveis acabou por fornecer argumentos
importantes a favor do casamento gay. O casamento e a formação de famílias gays
estáveis pode ser um fator importante na redução da promiscuidade e promoção de
um estilo de vida saudável. O casamento gay é, portanto, do interesse maior da
sociedade.
A outra história da qual eu me lembrei foi contada pelo
David Horowitz (2012) no livro “Filho radical”. O cenário é San Francisco no início
dos anos 1980, quando a epidemia de AIDS estava se disseminando a partir de
algumas poucas cidades dos EUA e quando se descobriu que os homens gays eram um
grupo de risco que estava contribuindo para disseminar a doença. Aconteceu que
o lobby gay fez tanta pressão sobre as autoridades de saúde nos EUA, que as
mesmas optaram por não implementar campanhas de saúde pública com o intuito de
informar a população e prevenir a disseminação da doença. O motivo alegado era
resistir ao preconceito e não estigmatizar mais ainda a população gay. O
resultado dessa decisão é por demais conhecido.
Daí eu fui confirmar a história. Descobri um livro chamado “And
the band played on: politics, people, and the AIDS epidemic”, escrito por um
jornalista chamado Randy Shilts (1987). Shilts, que era homossexual, conta
toda a história. Ele próprio vivia em San Francisco e acreditava estar
infectado. Preferiu não realizar os exames ou iniciar qualquer tratamento enquanto
escrevia o livro. Morreu pouco depois do livro ser publicado. Conta todos os
detalhes.
Fico pensando: Será que a história está se repetindo? Será
que o ministro Fachin não dispõe dessas informações que eu encontrei com tanta
facilidade? Se ele dispõe dessas informações, está baseando seu voto em que
outro tipo de considerações de interesse maior? Ou será que as informações que
eu consegui recolher são inválidas ou constituem mais um exemplo de “preconceito e desconhecimento”?
Referências
Barreto,
V. H. S. (2012). Vamos fazer uma sacanagem gostosa?” Uma etnografia do desejo edas práticas da prostituição masculina carioca. Nitéroi: Universidade Federal
Fluminense, Programa de Pós-graduação em Antropologia. Dissertação de mestrado
não-publicada ().
Barreto, V. H. S. (2016). Festas de orgia para homens:territórios de intensidade e socialidade masculina. Nitéroi: Universidade
Federal Fluminense, Programa de Pós-graduação em Antropologia. Tese de
doutorado não-publicada.
Horowitz,
D. (2012). Filho radical. A odisséia de uma geração. São Paulo: Peixoto
Neto.
Lu, J., Xu,
J., Reilly, K.H., Li, Y., Zhang, C.M., Jiang, Y., Geng, W., Wang, L., & Shang,
H. (2015). The proportion
and trend of human immunodeficiency virus infections associated with men who
have sex with men from Chinese voluntary blood donors: a systematic review and
meta-analysis. Transfusion. 2015 Mar;55(3):576-85. (doi: 10.1111/trf.12871).
Malta, M., Magnanini, M. M., Mello, M. B., Pascom, A. R.,
Linhares, Y., & Bastos, F. I. (2010). HIV
prevalenceamong female sex workers, drug users and men who have sex with men in Brazil: asystematic review and meta-analysis. BMC Public Health, 7, 10, 317 (doi:
10.1186/1471-2458-10-317).
Meng, X.,
Zou, H., Fan, S., Zheng, B., Zhang, L., Dai, X., Deng, M., Zhang, X., & Lu,
B. (2015). Relative risk for HIV infection
among men who have sex with men engaging in different roles in anal sex: a
systematic review and meta-analysis on global data. AIDS & Behavior, 19, 882-889.
(doi: 10.1007/s10461-014-0921-x).
Shilts, R. (1987). And the band played on: politics,
people, and the AIDS epidemic. New York: St. Martin’s Press.
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