sábado, 30 de setembro de 2017

O TRANSGENDERISMO É UM ESSENCIALISMO

Obviamente existem diferenças entre os cérebros dos homens e das mulheres. O dimorfismo sexual não se restringe aos genitais. O cérebro também é um órgão reprodutor. As diferenças podem ser caracterizadas do ponto de vista anatômico, fisiológico e químico. Elas são reais. E, a propósito, são negadas pelas feministas de gênero. P. ex.  durante o ciclo menstrual, gestação, parto, lactação etc. o hipotálamo da mulher passa por diversas alterações anátomo-funcionais.

Também não é  um absurdo, em si, que um homem possa ter um cérebro com características mais femininas. Isso é por demais conhecido. A diferenciação sexual do cérebro pode depender mais de níveis hormonais na vida fetal do que de influências genética. P. ex., meninas com hiperplasia adrenal congênita ou cujas mães receberam altas doses de corticóides na gestação podem apresentar características comportamentais masculinizadas (tomboyismo). Individuos cromossomicamente masculinos com insenbilidade congênita aos andrógenos desenvolvem características fenotípicas femininas, inclusive cerebrais e comportamentais. Tudo isso é antigo e bem conhecido. A novidade é usar essa hipótese para promover uma agenda política; o que só leva a absurdos.

Alguns dos absurdos do transgenderismo são: 1) Acreditar que existe um cérebro tipicamente masculino ou tipicamente feminino; 2) Acreditar que isso, eventualmente, justificaria quaisquer tratamentos cirúrgicos cosméticos com o intuito de aproximar o corpo da pessoa ao do sexo que ela almeja; 3) Acreditar que uma pessoa pode mudar de "gênero", seja lá o que a palavra "gênero" signifique; 4) Acreditar que o pagador de impostos deve arcar com os custos desses tratamentos, os quais seriam priorizados em detrimento de outras necessidades de saúde da população; 5) Acreditar que essas decisões médicas podem ser tomadas simplesmente com base em critérios subjetivos, de como o indivíduo "se sente", na ausência de quaisquer critérios biológicos que possam comprovar a hipótese de que a pessoa tem “o cérebro de um sexo preso no corpo de outro sexo” e sem levar em consideração o perfil mais amplo de psicopatologias associadas e as conseqüências desses procedimentos radicais; 6) Acreditar que se possa violar o corpo de crianças em nome de uma ideologia.

São tantas crenças esdrúxulas, que fica difícil pegar no pé de cada  uma. Vou fazer um comentário apenas sobre a questão do essencialismo sexual. O feminismo de gênero critica o essencialismo sexual cerebral. O transgenderismo se apóia nesse conceito, que mais lembra aquelas piadas sobre as eventuais diferenças entre os cérebros de homens e mulheres.


A má notícia é que não existem cérebros tipicamente femininos e tipicamente masculinos. Os cérebros de  homens e mulheres diferem entre si. Mas, em muitos aspectos relevantes para o comportamento, a personalidade e a cognição, as diferenças intra-sexuais são muito maiores do que as diferenças inter-sexuais. E essa variabilidade é maior no sexo masculino do que no sexo feminino. Então é possível dizer que as diferenças de temperamento entre os homens podem até ser maiores do que entre a média dos homens e média das mulheres.

Apesar de haver características mais freqüentes entre homens do que entre mulheres, e vice versa, é muito perigoso ficar raciocinando em termos de estereótipos. Como se houvesse tipos ideais: o "cérebro masculino" e o "cérebro feminino". Os estereótipos não são inúteis como uma primeira aproximação à realidade. Mas a realidade é muito mais complexa e os preconceitos freqüentemente precisam ser reformulados quando se conhece uma pessoa de carne e osso. Não se pode ficar tomando decisões de saúde com implicações potencialmente gravíssimas do ponto de vista social e pessoal simplesmente com base em estereótipos, ou seja, preconceitos. Ou com base em uma agenda política. Afinal, nós não queremos justamente combater o preconceito?

A triste sina dos inteligentinhos livres de preconceito, cuja unica ocupação na vida consiste em combater o preconceito, é que eles acabam vitimas dos seus próprios preconceitos. O preconceito das feministas de gênero é que não há essências. O preconceito dos transgenderistas é que há essências. Para não esquecer que, pairando altaneiro nas alturas do politicamente correto, sobressai-se o preconceito de não ter preconceitos. 

Nota bilbiográfica

 
Um dos melhores estudo que eu li sobre o assunto está disponível gratuitamente na inerent: Mayer. L. S. & McHugh, P. R. (2016). Sexuality and gender. Findings from the biological, psychological, and socialsciences. The New Atlantis. A Journal of Technology and Society, 50, 1-144.


quinta-feira, 21 de setembro de 2017

SERÁ QUE A LÓGICA TEM ALGUM VIÉS POLÍTICO?

Um pessoalzinho aí resolveu fazer uma homenagem ao Paulo Freire e o Prof. Carlos Nougué do Centro Dom Bosco foi lá conferir.

A partir do que ele falou, dá para ficar pensando: Será que a lógica fica de algum lado do espectro político ou é também puramente uma questão de gosto?

"Pois bem, sentei-me aqui e li: 'por uma educação que nos ensine a pensar e não que nos ensine só a obedecer'. Acho perfeito, acho perfeito. Agora, para saber a que se deve obedecer e para saber o que é pensar corretamente, ao contrário do que alguns disseram aqui, isso implica a noção de verdade. Por exemplo, disseram, acho que foi a senhora, que a verdade é algo construído. Certo? Algo mais ou menos assim. Eu pergunto: é verdade que a verdade é algo construído? Se a senhora me disser que sim, eu lhe digo que a verdade é absoluta. Se a senhora me disser que não, nós não vamos chegar a nenhum lugar" (Prof. Carlos Nougué).

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

NINGUÉM PODE METER O BEDELHO NA EDUCAÇÃO DOS FILHOS DOS OUTROS


Essa história do Queermuseu já está meio chatinha, mas vamos lá. Pelo que andei observando, quatro falácias andam grassando soltas pela internet:

Falácia 1: Tratar-se-ia de uma forma de censura. Não é. Trata-se de um boicote;

Falácia 2: As pessoas que boicotaram a exposição não compreenderiam nada de arte. Seriam fascistas conservadores, fanático religiosos etc. Novamente, tudo besteira. A discussão é sobre um crime e não sobre a natureza artística e o eventual bom ou mau gosto das obras expostas;

Falácia 3: Não tem nada demais  com as obras expostas. Outros artistas famosos do passado e do presente já representaram esse tipo de comportamento exibido no Queer museu, tendo seu trabalho reconhecido e exibido em museus importantes etc. Novamente, a discussão não é sobre o limites do que pode e do que não pode em termos de arte. Mas, sobre o contexto em que a exposição ocorreu;

Falácia 4: Não existe essa história de dinheiro público. Existe sim. Renúncia de impostos significa justamente isso, que o dinheiro dos impostos é desviado para finalidades propostas por um agente privado. Mas o dinheiro é público sim, na medida em que deveria ser usado para financiar coisas de interesse público e não privado.

Uma das melhores discussões que assisti sobre o assunto foi no hangout do Joselito Müller. A Madeleine Lacsko (Figura 1) matou a pau chamando a atenção para duas coisinhas bem simples que caracterizam a exposição como um crime contra as nossas crianças. Não tem nada ver com arte. A exposição gorou porque a sociedade não aceitou ver seus filhos submetidos à doutrinação de gênero perpretada pelos adeptos da teoria queer. Só isso.

Figura 1 - Você acha que a Madeleine Lacsko é uma pessoa retrô?


A Madeleine Lacsko chamou atenção para dois aspectos fundamentais:

1. O edital do Ministério da  Cultura previa atividades de "democratização". Ou seja, toda uma série de atividades de cunho "didático". voltadas para os alunos e professores das escolas. O que eles estavam querendo fazer era só isso: Doutrinar as crianças na teoria queer. Isso fica bem claro no edital que possibilitou a captação de recursos (vide Figura 2): "Todas as atividades propostas serão gratuitas à população: Programa Educativo será oferecido para todas as instituições que agendarem visitação; Folder com 24 páginas, tiragem de 15 mil exemplares contendo informações sobre as obras e textos explicativos. Caderno do Professor, tiragem de 1.000 unidades para distribuição aos professores que acompanharem os alunos na visita de escolas. Impressão de 2 mil unidades do catálogo da exposição com a seguinte distribuição gratuita: 200 unidades serão destinadas à baixa renda através da distribuição em escolas da rede pública que visitarem a exposição; 200 unidades para bibliotecas, museus e MinC; 200 unidades destinadas para os patrocinadores; 50 unidades para o Curador; 50 unidades para o proponente; 1.300 unidades serão destinadas aos visitantes que solicitarem; Total 2.000 unidades". Quer dizer, as crianças, os estudantes e os professores eram sim o público-alvo da exposição. Está no edital.

Figura 2 - Edital do Ministério da Cultura que permitiu a captação de recursos 
junto à iniciativa privada para a realização do Queermuseu.

2. Como se pode ver no edital, os objetivos declarados da exposição Queermuseu constituem uma enrolação danada. Mas só não vê quem não quer. Trata-se de uma exposição com o intuito de doutrinar os filhos dos outros na ideologia de gênero. Ou quiça coisa pior, como pedofilia e bestialidade. Criou-se todo um contexto para tratar como "naturais", "normais" ou no minimo "aceitáveis" uma série de manifestações de "diversidade sexual" que são altamente controversas. E aí a Madeleine Lackso matou a pau: A exposição Queermuseu consistiu uma grave violação dos direitos dos pais definirem a orientação a ser seguida pela educação dos seus filhos. Um direito natural e inviolável. Ela citou o Inciso 3 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, com a qual o Brasil se comprometeu: "Aos pais pertence a prioridade do direito de escholher o género de educação a dar aos filhos".

É simples assim. Para a coisa está para lá de resolvida. Os pais têm o direito de decidir sobre a educação dos seus filhos. Os pais podem ser preconceituosos, retrógrados, reacionários etc. Podem não entender nada de arte. Mas os pais têm o direito de educar seus filhos do modo como acharem melhor, desde que não os eduquem de modo a prejudicar os direitos das outras pessoas. O estado e muito menos curadores de exposições artísticas ou empresas bancárias não podem meter o bedelho na educação dos filhos dos outros.

Não tem nada a ver com arte ou malasarte. É apenas uma questão de direitos humanos.






domingo, 17 de setembro de 2017

Roger Scruton: Natureza, direitos e deveres humanos

Scruton, R. (2017). On human nature. Princeto: Princeton  University Press.
 

O livro de Roger Scruton "On human nature" publicado em 2017 foi baseado em três conferências com o mesmo título proferidas na Universidade de Princeton.

1. Human nature

2. Human rights

3. Human duties




sábado, 16 de setembro de 2017

COMO OS PAIS PODEM COMPENSAR AS DEFICIÊNCIAS DAS ESCOLAS?

Um pai me escreveu preocupado com a educação dos seus filhos. Diz que seus meninos, cursando o Fundamental I e Educação Infantil, estão indo bem. O pai se envolve com sua aprendizagem mas, ao mesmo tempo e porisso mesmo, se preocupa com seu futuro. A preocupação vêm do fato de que a escola é construtivista.

Ele andou lendo algumas coisas, inclusive a crítica que eu fiz do construtivismo.  Mas quer saber mais.

Escrevi para esse pai com o maior carinho e acho que minha resposta talvez possa ser útil para outras pessoas também.

O construtivismo funciona melhor para as crianças normais, sem deficiências cognitivas, sem problemas de comportamento e de classe média. Se a criança tem algum problema como TDAH ou dislexia, a coisa complica bastante.

O maior problema que eu vejo com o construtivismo é o desprezo pelo conhecimento. O construtivismo, incluindo aí o Paulo Freire, acredita que a educação não se deve reduzir à “mera transmissão do conhecimento”. Isso é uma falácia por várias razões.

O conhecimento é muito importante para a aprendizagem. A aprendizagem depende da integração de forma ativa de novas informações ao conhecimento previamente armazendo, transformando-o. A memória de longo-prazo não é um repositório passivo de informação. Mas, sim, um sistema ativo que assimila nova informação, transformando-a em conhecimento, e integrando-o ao conhecimento prévio, ou seja, acomodando-a.

É possível ler sobre isso no maravilhoso livro de Daniel Willingham (2011). Por que os alunos não gostam da escola? Porto Alegre: Penso.


Outro livro que recomendo é: Christodoulou, D. (2014). Seven myths about education. London: Routledge / The Curriculum Centre.

Uma das áreas nas quais o conhecimento desempenha um papel fundamental é a compreensão de textos. O vocabulário é um dos principais preditores da compreensão leitora e a falta de conhecimento de mundo (leia-se vocabulário) é uma das principais razões do fracasso no letramento das crianças mais pobres.

Outro exemplo são os fatos aritméticos. Sem memorizar a tabuada de multiplicação não tem como a criança progredir na matemática. Memorizar, entretanto, não significa decorar verbalmente (decoreba), mas sim se envolver tantas vezes com a tarefa de cálculo simples que as associações problemas-resposta acabam sendo memorizadas sob a forma de fatos aritméticos.  É inaceitável, p. ex., que um adolescente não conheça os fatos aritméticos e precise contar nos dados. Mas eu vejo isso com freqüência no nosso ambulatório.

Ao invés da educação como transmissão de conhecimento são preconizdas formas ativas de apendizagem. Como se pudesse haver algum tipo de aprendizagem que não fosse ativa. Ou seja, que não dependesse do engajamento do aprendiz. O que se chama de aprendizagem ativa muitas vezes não passa de uma espécie de teatrinho com caráter lúdico mas baixíssima eficicência do ponto de vista da aprendizagem.

Uma revisão de mais de 800 meta-análises conduzida por Hattie (2009, Visible learning. A synthesis of over 800 meta-analyses relating to achievement. London: Routledge) comprova a superioridade dos métodos que se revestem de algum componente instrucional. Os métodos ativos, tais como aprendizagem por descoberta e cooperação, podem ajudar na motivação. Mas não são o caminho mais eficiente para a aprendizagem. Quando o aluno se confronta com situações-problema muito desestruturadas, ele tende a buscar a solução através de uma estratégia de tentativa e erro. Gasta muitos recursos de processamento para a descoberta da solução e com isso não sobram recursos para a aprendizagem.

Outras vezes, tanto o professor quanto o aluno se restringem aos aspectos exteriores, comportamentais, dos métodos ativos sem que ocorra um verdadeiro engajamento cognitivo, do qual depende, em última análise a aprendizagem. O que é essencial para a aprendizagem é o engajemento cognitivo. O engajamento comportamental é opcional.

A suspeita que fica é que a crítica à educação como “mera transmissão de conhecimento” possa, na verdade, servir de desculpa para a ignorância de muitos professores. Afinal, se transmitir conhecimento não é importante, por que os professores precisam se dar ao trabalho de adquirí-lo?

No mundo inteiro, mas principalmente nos EUA, está crescendo o movimento de homeschooling. Nos EUA há pais que se encarregam inteiramente da educação dos filhos em casa. Mesmo que não se adote essa posição radical, o envolvimento dos pais no sentido de suprir as deficiências da escola pode ser importante. Desde que não surjam conflitos. Isso depende muito da conjuminação de temperamentos da criança e dos pais. Quando surgem conflitos, o envolvimento dos pais tem o efeito contrário.

Tem um livro muito bacana sobre homeschooling: Bauer, S. W. e Wise, J. (2004). The well-trained mind. A guide to classical education at home. New York: Norton.

Bauer e Wise defendem a retomada de uma educação clássica, no treinamento das artes liberais, tais como o trivium composto por gramática, lógica e retórica. O mundo contemporâneo está totalmente multimidiático. Mas há determinadas formas de pensamento, habilidades de raciocínio que dependem crucialmente das habilidades verbais. As crianças têm acesso ao conhecimento multimídia em toda parte, em casa, na rua e na escola, de manhã até de noite. Uma boa educação pode fazer uma diferença treinando a criança no domínio das habilidades verbais. Aparentemente, de tão deslumbrada com a multimídia, a escola tem sistematicamente se recusado a fazer isso. Inclusive as particulares.

Isso sem falar, obviamente, na fluência oral e escrita na língua inglesa.

Há um deslumbramento inegável com o conhecimento multimidiático. Não é possível saber com certeza se o conhecimento multimidiático vai substituir o conhecimento verbal. Só o futuro dirá. Minha desconfiança e de muita gente é que isso não venha a ocorrer. Fiz um post sobre isso, discutindo as limtações da Base Nacional Comum Curricular atualmente proposta.

Eu acho que além do trivium de artes liberais (gramática, lógica e retórica) a educação contemporânea deve compreender o trivium de artes tecnológicas: a) eletrônica para mexer nos aparelhos; b) programação de computador para fazer os aparelhos trabalharem; e c) matemática para modelar funções implementadas pelos aparelhos.

Aqui no Brasil, o Prof. Carlos Nadalim mantém um blog sobre homeschooling, produzindo materais, orientando as famílias e oferecendo cursos.




sexta-feira, 8 de setembro de 2017

BARBARIDADE CURRICULAR NACIONAL BEM COMUNZINHA

Uma das mais recentes ameaças à cultura, educação e bom senso no Brasil atende pelo nome de Base Nacional Comum Curricular (BNCC).  A estrovenga curricular vem juntar-se a todo um rol de jabuticabas culturais, tais como a tomada de três pinos e o kit de primeiros socorros nos carros etc. Depois de listar alguns dos principais problemas que vejo nessa joça, vou me concentrar na discussão de apenas um, o fato de que a BNCC pode até prejudicar a formação dos brasileiros, mas terá apenas um pífio impacto sobre a a História e a Cultura em escala  global. Segue a lista com apenas alguns problemas:

Em primeiro lugar, o nome da joça parece ter sido escrito em Dilmês. Quando é preciso enfileirar uma série de adjetivos antes ou depois de um substantivo importa decidir primeiro quem qualifica quem. No caso trata-se de uma base curricular, ou seja de uma base para estabelecer parâmetros curriculares a serem obedecidos pelas escolas. Quais escolas? As escolas de todo o Brasil. Trata-se, portanto, de uma Base Curricular Nacional. E o que faz o “comum” na estrovenga? Apenas testemunha a falta de lógica de quem inventou o nome da coisa. O qualificativo “comum” pode ser compreendido de duas maneiras. A primeira delas é como “alguma coisa a ser compartilhada por todas as as escolas do País” e, portanto, nacional. Ora, se a base é nacional pressupõe-se que seja aplicável a todas as escolas do País, sendo portanto, comum a todas. Frente ao “nacional” o “comum” torna-se redundante. A segunda acepção é de “ordinário”. Acredito que tenha sido nessa acepção de vulgar, ordinário, de porcaria que o adjetivo “comum” tenha entrado no nome da BNCC. Do modo como foi concebido o nome, ou é redundante ou apenas pejorativamente qualificativo. Uma produção cultural bem comunzinha, de fato.

Em segundo lugar, a orientação teórico-metodológica da joça é arcaica e ideológica. A BNCC é inteiramente formulada a partir do romantismo pedagógico iniciado por Rousseau e seguido por Dewey, Vygotsky, Wallon, Piaget, Freire etc. A literatura é predominantemente nacional, em português e os avanços teóricos e metodológicos das ciências cognitivas nas últimas décadas são solenemente ignorados. Não se percebe um esforço para fundamentar a prática educacional nas melhores evidências empíricas disponíveis. Ao contrário, os autores partem de pressupostos indemonstrados do que consideram uma educação ideal, apenas para impor uma camisa de força ideológica ao ensino.

Em terceiro lugar, a ênfase dada aos chamados “temas transversais” sinaliza a desistência de querer ensinar qualquer coisa aos alunos que não seja ideologia. É irônico que, os mesmos “educadores” que não conseguem ensinar as crianças a ler e escrever as palavras, a interpretar textos e a fazer contas queiram utilizar as aulas de matemática para “problematizar” sobre racismo, sexismo, justiça social etc. As crianças acabam não aprendendo nem uma coisa nem outra. O produto final são gerações sucessivas de analfabetos funcionais, inábeis no manejo das letras e números mas peritos no tráfico de maconha e cocaína e no uso de fuzis, metralhadoras e bazucas. Nâo deixa de ter sua lógica. Afinal, os deficientes morais são heróis da resistência popular.

Em quarto lugar, a leitura da BNCC é reminiscente da discussão sobre o “Nóis pega os peixe” apresentada naquela pseudo-gramática que pregava o abandono do ensino da Norma Culta em Português. Ou do “Nóis não vai ser preso” do Joesley Safadão. A Norma Culta é condenada por, supostamente, representar uma forma de opressão, um aparelho ideológico de estado com a função precípua de estabelecer relações de opressão de classe, entre aqueles que a dominam e aqueles que não conseguem manejá-la. Trata-se, evidentemente, de uma injunção paradoxal. Ao mesmo tempo em que a Norma Culta é condenada por, supostamente, ser um mecanismo de dominação ideológica, o desprezo pelo seu ensino priva os alunos mais pobres justamente da única chance que teriam para subir pelo elevador social.

Finalmente, a “Alta Cultura” ou tudo que tem a ver com os bons costumes e a Civilização Ocidental também são claramente desprestigiados. O anátema lançado sobre a Civilização Ocidental segue a tendência relativista cultural iniciada pelo antropólogo Franz Boas e propagada por seus discípulos mundo afora. Nos EUA, por exemplo, alguns colleges não incluem mais Shakespeare no seu currículo porque o Bardo Inglês não passava de um macho branco, um “supremacista”.

Mas, o fato de muitos colleges norte-americanos ou a Base Curricular Nacional brasileira abandonarem a Civilização Ocidental não implica que a mesma deixe de ser cultivada ou perca sua importância em escala global. Eu me dei conta disso, lendo um texto do Gustavo Ioschpe:

“Eu tive o privilégio de estudar em boas escolas particulares. Foi só quando fui cursar uma universidade  de ponta nos Estados Unidos que entendi o quão deficiente a minha escolaridade havia sido.
“Meus colegas indianos haviam lido Shakespeare e Dante para a escola. Na minha, lemos Lima Barreto e Adolfo Caminha. Os chineses e russos tinham uma intimidade com a Matemática que lhes permitia visualizar a relação entre as equações e as formas espaciais que elas descreviam. Para mim, Matemática era só pegar lápis, papel e resolver um problema. Os dados estatísticos mostram que as deficiências da minha escola são compartilhadas por milhões de alunos de todo o país” (Ioschpe, 2012).

Os americanos e as crianças brasileiras até podem parar de estudar a História Ocidental Antiga, podem até mesmo nunca começar a ler Shakespeare ou Dante. Mas não será por causa disso que os indianos e chineses deixarão de estudar a Civilização Ocidental. Sem prejuízo à sua própria identidade cultural. Um indiano ou chinês não deixa de ser indiano ou chinês apenas por ler Shakespeare ou Dante. Tais leituras enriquecem sua formação, sem desqualificar sua própria cultura. Não existe essa antinomia.

Um outro insight pertinente que eu tive foi fazendo um curso sobre a cultura de Israel na Época Bíblica. Estima-se que apenas 1% da população de Israel naquela época fosse alfabetizada e pudesse ler a Bíblia. A leitura da Torá e sua explicação para o resto da população analfabeta era o papel dos Levitas, os filhos da Tribo de Israel que não recebeu terras.

O Talmud  de Alfred Lakos (1870-1961)

Essa situação foi herdada pela Cristandade: quem lia a Bíblia em Latim eram os padres. E perdurou até o Século XVI quando Lutero traduziu a Bíblia para o Alemão. Em poucas semanas havia edições da Bíblia nas principais cidades alemãs. Em poucos meses surgiram traduções da Bíblia nas principais línguas européias. Com isso a Bíblia e a leitura e interpretação de textos tornaram-se acessíveis a uma parcela crescente da população que não sabia Latim. Esse processo acentuou-se a partir da universalização do ensino fundamental na virada do Século XIX para o XX e culminou com o acesso universal à Alta Cultura através da Internet.

Lutero traduzindo a Bíblia no Castelo de Wartburg 1521 
(óleo sobre tela – Eugene Siberdt, 1898)

O acesso e a disponibilidade de informação cresceram de tal forma que o problema contemporâneo é justamente o de transformar informação em conhecimento ou cultura. Separar o joio do trigo. E essa é uma das principais funções da escola. Apresentar aos alunos o cardápio multicultural de forma que os mesmos possam fazer suas comparações e extrair suas próprias conclusões. Não é sonegando informação aos alunos que se “constrói o conhecimento”. Os brasileiros até podem nunca a vir a ler Shakespeare e Dante. Os brasileiros até podem gastar seu tempo na aula de matemática problematizando o sexismo. Mas isso não lhes vai ser de serventia alguma enquanto os indianos e chineses continuarem a ler Shakespeare e Dante ou a aprender matemática de forma efetiva. Enquanto houver 1% da população que saiba ler Shakespeare e Dante a Civilização Ocidental vai perdurar. Foi assim que o Judaísmo sobreviveu à escravidão no Egito e na Babilônia, aos pogroms na Rússia e ao Holocausto alemão. E os 99% restantes serão barrados do baile. Esses 99% serão condenados a permanecer como eleitorado cativo dos populistas, eternamente enganados pelos lularápios e joesleys safadões. É isso que queremos?



Referência

Ioschpe, G. (2012). O que o Brasil quer ser quando crescer? {E outros textos sobre educação e desenvolvimento}. Rio de Janeiro: Objetiva.