Uma das mais recentes ameaças à
cultura, educação e bom senso no Brasil atende pelo nome de Base Nacional Comum
Curricular (BNCC).
A estrovenga curricular vem juntar-se a todo um rol de jabuticabas culturais,
tais como a tomada de três pinos e o kit de primeiros socorros nos carros etc.
Depois de listar alguns dos principais problemas que vejo nessa joça, vou me
concentrar na discussão de apenas um, o fato de que a BNCC pode até prejudicar
a formação dos brasileiros, mas terá apenas um pífio impacto sobre a a História
e a Cultura em escala global. Segue a
lista com apenas alguns problemas:
Em primeiro lugar, o nome da joça
parece ter sido escrito em Dilmês. Quando é preciso enfileirar uma série de
adjetivos antes ou depois de um substantivo importa decidir primeiro quem
qualifica quem. No caso trata-se de uma base curricular, ou seja de uma base
para estabelecer parâmetros curriculares a serem obedecidos pelas escolas.
Quais escolas? As escolas de todo o Brasil. Trata-se, portanto, de uma Base
Curricular Nacional. E o que faz o “comum” na estrovenga? Apenas testemunha a
falta de lógica de quem inventou o nome da coisa. O qualificativo “comum” pode
ser compreendido de duas maneiras. A primeira delas é como “alguma coisa a ser
compartilhada por todas as as escolas do País” e, portanto, nacional. Ora, se a
base é nacional pressupõe-se que seja aplicável a todas as escolas do País,
sendo portanto, comum a todas. Frente ao “nacional” o “comum” torna-se
redundante. A segunda acepção é de “ordinário”. Acredito que tenha sido nessa
acepção de vulgar, ordinário, de porcaria que o adjetivo “comum” tenha entrado
no nome da BNCC. Do modo como foi concebido o nome, ou é redundante ou apenas pejorativamente
qualificativo. Uma produção cultural bem comunzinha, de fato.
Em segundo lugar, a orientação
teórico-metodológica da joça é arcaica e ideológica. A BNCC é inteiramente
formulada a partir do romantismo pedagógico iniciado por Rousseau e seguido por
Dewey, Vygotsky, Wallon, Piaget, Freire etc. A literatura é predominantemente
nacional, em português e os avanços teóricos e metodológicos das ciências
cognitivas nas últimas décadas são solenemente ignorados. Não se percebe um
esforço para fundamentar a prática educacional nas melhores evidências
empíricas disponíveis. Ao contrário, os autores partem de pressupostos
indemonstrados do que consideram uma educação ideal, apenas para impor uma
camisa de força ideológica ao ensino.
Em terceiro lugar, a ênfase dada
aos chamados “temas transversais” sinaliza a desistência de querer ensinar
qualquer coisa aos alunos que não seja ideologia. É irônico que, os mesmos “educadores” que não
conseguem ensinar as crianças a ler e escrever as palavras, a interpretar
textos e a fazer contas queiram utilizar as aulas de matemática para
“problematizar” sobre racismo, sexismo, justiça social etc. As crianças acabam
não aprendendo nem uma coisa nem outra. O produto final são gerações sucessivas
de analfabetos funcionais, inábeis no manejo das letras e números mas peritos
no tráfico de maconha e cocaína e no uso de fuzis, metralhadoras e bazucas. Nâo
deixa de ter sua lógica. Afinal, os deficientes morais são heróis da
resistência popular.
Em quarto lugar, a leitura da BNCC
é reminiscente da discussão sobre o “Nóis pega os peixe” apresentada naquela
pseudo-gramática que pregava o abandono do ensino da Norma Culta em Português.
Ou do “Nóis não vai ser preso” do Joesley Safadão. A Norma Culta é condenada
por, supostamente, representar uma forma de opressão, um aparelho ideológico de
estado com a função precípua de estabelecer relações de opressão de classe, entre
aqueles que a dominam e aqueles que não conseguem manejá-la. Trata-se,
evidentemente, de uma injunção paradoxal. Ao mesmo tempo em que a Norma Culta é
condenada por, supostamente, ser um mecanismo de dominação ideológica, o
desprezo pelo seu ensino priva os alunos mais pobres justamente da única chance
que teriam para subir pelo elevador social.
Finalmente, a “Alta Cultura” ou
tudo que tem a ver com os bons costumes e a Civilização Ocidental também são
claramente desprestigiados. O anátema lançado sobre a Civilização Ocidental
segue a tendência relativista cultural iniciada pelo antropólogo Franz Boas e propagada
por seus discípulos mundo afora. Nos EUA, por exemplo, alguns colleges não
incluem mais Shakespeare no seu currículo porque o Bardo Inglês não passava de
um macho branco, um “supremacista”.
Mas, o fato de muitos colleges
norte-americanos ou a Base Curricular Nacional brasileira abandonarem a
Civilização Ocidental não implica que a mesma deixe de ser cultivada ou perca
sua importância em escala global. Eu me dei conta disso, lendo um texto do
Gustavo Ioschpe:
“Eu tive o privilégio de estudar
em boas escolas particulares. Foi só quando fui cursar uma universidade de ponta nos Estados Unidos que entendi o
quão deficiente a minha escolaridade havia sido.
“Meus colegas indianos haviam lido
Shakespeare e Dante para a escola. Na minha, lemos Lima Barreto e Adolfo
Caminha. Os chineses e russos tinham uma intimidade com a Matemática que lhes
permitia visualizar a relação entre as equações e as formas espaciais que elas
descreviam. Para mim, Matemática era só pegar lápis, papel e resolver um
problema. Os dados estatísticos mostram que as deficiências da minha escola são
compartilhadas por milhões de alunos de todo o país” (Ioschpe, 2012).
Os americanos e as crianças
brasileiras até podem parar de estudar a História Ocidental Antiga, podem até
mesmo nunca começar a ler Shakespeare ou Dante. Mas não será por causa disso
que os indianos e chineses deixarão de estudar a Civilização Ocidental. Sem
prejuízo à sua própria identidade cultural. Um indiano ou chinês não deixa de
ser indiano ou chinês apenas por ler Shakespeare ou Dante. Tais leituras enriquecem sua formação, sem desqualificar sua própria cultura. Não existe essa
antinomia.
Um outro insight pertinente que eu
tive foi fazendo um curso sobre a cultura de Israel na Época Bíblica. Estima-se
que apenas 1% da população de Israel naquela época fosse alfabetizada e pudesse ler a Bíblia.
A leitura da Torá e sua explicação para o resto da população analfabeta era o
papel dos Levitas, os filhos da Tribo de Israel que não recebeu terras.
O Talmud de Alfred Lakos (1870-1961)
Lutero traduzindo a Bíblia no Castelo de Wartburg 1521
(óleo sobre tela – Eugene Siberdt, 1898)
O acesso e a disponibilidade de
informação cresceram de tal forma que o problema contemporâneo é justamente o
de transformar informação em conhecimento ou cultura. Separar o joio do trigo. E
essa é uma das principais funções da escola. Apresentar aos alunos o cardápio multicultural
de forma que os mesmos possam fazer suas comparações e extrair suas próprias
conclusões. Não é sonegando informação aos alunos que se “constrói o
conhecimento”. Os brasileiros até podem nunca a vir a ler Shakespeare e Dante.
Os brasileiros até podem gastar seu tempo na aula de matemática problematizando
o sexismo. Mas isso não lhes vai ser de serventia alguma enquanto os indianos e
chineses continuarem a ler Shakespeare e Dante ou a aprender matemática de
forma efetiva. Enquanto houver 1% da população que saiba ler Shakespeare e
Dante a Civilização Ocidental vai perdurar. Foi assim que o Judaísmo sobreviveu à escravidão no Egito e na Babilônia, aos pogroms na Rússia e ao Holocausto alemão. E os 99% restantes serão barrados
do baile. Esses 99% serão condenados a permanecer como eleitorado cativo dos
populistas, eternamente enganados pelos lularápios e joesleys safadões. É isso
que queremos?
Referência
Ioschpe, G. (2012). O que o Brasil quer ser
quando crescer? {E outros textos sobre educação e desenvolvimento}. Rio de
Janeiro: Objetiva.
Nenhum comentário:
Postar um comentário