sábado, 19 de agosto de 2017

DOULARIZAÇÃO DA OBSTETRÍCIA: Restrição orçamentária e vigarice ideológica

As parteiras do Reino Unido desistiram da sua campanha pelo parto fisiológico. A reportagem é capciosa. Por trás dessa questão se esconde mais uma tentativa do marxismo cultural se empoderar da sociedade, no caso a obstetrícia. O negócio é tão furado que até lá no RU, onde a formação das parteiras é excelente, elas tiveram que dar pra trás. Tá morrendo gente adoidado e nascendo criança com o cérebro lesado. A questão é bem mais complexa. 

A série Call the Widwife da BBC romantiza
 a vida das parteiras no East End londrino.

A OMS inventou essas tais de doulas para humanizar o parto. Isso é modinha esquerdista chique que no fundo só serve para baratear o custo da obstetrícia, uma vez que médicos custam bem mais caro. Quem paga o pato do parto humanizado são as mães e as crianças quando a coisa complica. Existe um lobby para manter os médicos, obstetras e pediatras, longe da sala de parto. É uma vergonha. As questões por trás disso são o empoderamento alla Michel Foucault e a redução de custos. É a doularização da obstetrícia. 
  
Os interesses por trás da humanização do parto são ideológicos 
(repúdio à Civilização Ocidental) e  financeiros 
(economia orçamentária pelo estado).

No Brasil cerca de 50% dos partos são por cesariana. Os motivos são vários. A cesariana paga mais para o médico e é mais rápida e prática. Não precisa ficar esperando e encorajando a mãezinha a fazer força. Por que eles não aumentam a remuneração do parto vaginal em relação ao parto cesáreo? Se o parto vaginal pagasse mais, diminuiria a taxa de cesarianas. Mas os motivos não são apenas relacionados à cobiça dos médicos. Os médicos precisam ser remunerados à altura, mas há outras razões também para o alto nível de cesarianas. 

No Brasil é grande a incidência de pré-eclâmpsia, uma complicação gravíssima da hipertensão gravídica. A pré-eclâmpsia ocorre mais em primíparas, principalmente em adolescentes. A promiscuidade sexual é um fator de risco para a pré-eclâmpsia, apesar de não ser politicamente correto dizer isso. Quanto maior o tempo de relacionamento sexual entre uma mulher e um homem, menor a incidência de pré-eclâmpsia. O risco de pré-eclâmpsia é maior quando a gravidez resulta de um relacionamento fortuito, one-night stand. Se uma grávida está evoluindo para pré-eclâmpsia, ela PRECISA fazer uma cesariana, caso contrário há risco de morte ou lesão cerebral na mãe e no bebê. 

É claro que a gravidez e o parto são fenômenos fisiológicos. Não são doença. Veja como é o parto de uma babuína. Trata-se realmente de um fenômeno fisiológico. Quase banal.


Parto de uma babuína
(Rosenberg & Trevathan, 2006)

Mas a gravidez e o parto humanos são eventos que envolvem riscos altos para a saúde da mãe e do feto. E quando as coisas complicam, só os médicos podem ser de alguma valia. Quando são. As razões para isso são evolucionárias e decorrem da desproporção céfalo-pélvica. A postura ereta no Homo sapiens diminuiu o diâmetro do canal de parto, dificultando o processo. Acrescente-se a isso que o tamanho do cérebro humano evoluiu mais ainda, aumentando a desproporção céfalo-pélvica.

Proporção céfalo-pélvica em diversos primatas
(Rosenberg & Trevathan, 2007)

A maneira como a desproporção céfalo-pélvica foi resolvida na evolução humana é através de um mecanismo rotacional. A cabeça do bebê precisa rotar de forma a encaixar sua maior dimensão na maior dimensão do canal de parto. É aí que mora o perigo. É aí que acontecem as cacas e as mães e os bebês podem se dar mal. O mecanismo é bem complicadinho e pode emperrar, necessitando de auxílio perito e não curioso. Ou cesariana.

Mecanismo rotacional no parto humano. O cérebro do feto precisa rotar de forma que a maior dimensão da cabeça se alinhe com a maior dimensão do canal de parto.

Toda hora estão aparecendo casos na imprensa de parturientes às quais foi negado o acesso a uma cesariana por questões ideológicas. Por essa briguinha marxista cultural pelo empoderamento. É uma situação muito semelhante áquela da inclusão nas escolas. As crianças basileiras que precisam escola especial não têm acesso às mesmas e ficam nas escolas  regulares fazendo de conta que fazem alguma coisa relacionada à aprendizagem. 

Mas não poderia deixar de faltar a desonestidade intelectual esquerdista. A coisa funciona assim: O parto com médico é pintado como uma coisa desumana, do mal. Então, é óbvio, as pessoas do bem vão querer o parto fisiológico. Ou seja o parto do bem. Ninguém pode ser contra a humanização do parto, sob pena de ser acusado de fascista ou coisa pior.

 Doula é um nome chique para comadre. Nada contra as comadres. As redes femininas de apoio são importantes em culturas nas quais o cuidado paterno é baixo. Mas a  presença de uma comadre não deveria impedir a presença de um médico.

Essa vigarice apela também para um motivo moral profundo: a pureza. O parto natural, com a ajuda das doulas, é contraposto ao parto artificial, manejado por médicos. Claro que todas as pessoas descoladas, as mães naturebas vão preferir o parto humanizado. Isso só cola porque a população e a imprensa são ignorantes, não conhecem os riscos.

Parto artificial vs. Parto natural. O parto artificial é todo asséptico. O médico usa luvas e máscara. No parto natural está todo mundo numa boa. O pai está tão peladão quanto na hora em que fez a cria. Preste atenção no detalhe do colarzinho. É o charme. Pelado mas colarizado.

Desde que Semmelweiss descobriu a assepsia e acabou com a febre puerperal, a medicina só fez reduzir a mortalidade e morbidade materno-infantil. As estatísticas são brutais. Lembra daquele personagem clássico da literatura. o órfão cuja mãe morreu de parto e é criado por uma madrasta? Você conhece algum órfão de mortalidade materna perinatal? Eles existem, mas são tão poucos que não fazem mais parte do nosso imaginário.

Evolução da taxa anual de mortalidade materna por 1000 
crianças nascidas no Reino Unido (Chamberlain, 2006).

O lobby pelo parto domiciliar, natural, fisiológico, humanizado etc. vem da antropologia médica. Os antropólogos observavam algumas dezenas de partos em culturas não-tecnológicas e viam que não acontecia nada. Que as coisas corriam sempre bem. Inferiram daí que o parto é uma condição fisiológica e que os médicos deveram ser alijados do processo. Só que fazer inferências a partir de um n = 40 é uma coisa bem diferente de fazer inferências a partir de um n = 40 milhões. E tem mais, em muitas dessas sociedades não-tecnológicas existe o infantícidio de crianças malformadas e deficientes. Coisa que nos repugna no Ocidente.

Parto de uma primípara na Nova Guiné (Schievenhövel, 1983).

Tem outra coisa: Precisa ter pediatra na sala de parto. A maioria das crianças nasce bem. Mas tem aquelas que não nascem bem e daí o pediatra faz uma diferença. A deficiência intelectual, paralisia cerebral e epilepsia de causa perinatal chegaram ao seu nível mínimo de prevalência nos países do Hemisfério Norte, mas continuam grassando aqui no Brasil. Ter um pediatra na sala de parto contribuiria para reduzir a prevalência dessas condições. Na Europa o pessoal nem sabe mais mais direito o que é paralisia cerebral.

A prematuridade é o principal fator de risco para paralisia cerebral. A pré-eclâmpsia, principalmente em primíparas adolescentes é um dos principais fatores de risco para prematuridade. Quando a coisa complica, uma cesariana é mandatória.

Uma taxa de cesarianas de 50% é escandalosa, concordo. Mas há que entender as razões subjacentes. E essas não são poucas nem simples. Nâo são as doulas que vão resolver isso. Enquanto a promiscuidade, a gravidez na adolescência e a pré-eclâmpsia continuarem, as comadres serão no máximo um paliativo. A taxa de paralisia cerebral no Brasil é desconhecida, mas suspeito que seja mais escandalosa ainda do que a de cesarianas.

O público e a imprensa não têm acesso a essas informações. As decisões são tomadas de forma desinformada. A OMS e os governos agem de má fé, por razões ideológicas e financeiras. Os médicos não conseguem se comunicar com a população. Ou estão tão atarefados salvando vidas que não têm tempo ou energia para mais essa batalha.

São coisas bem diferentes uma mãe optar por um parto domiciliar, conhecendo os riscos, ou tomar essa decisão de forma desinformada. São coisas bem diferentes uma  pessoa optar por um parto humanizado ou ser forçada a isso. Por que o parto humanizado precisa impedir o acesso das mães a obstetras e o acesso dos bebês a pediatras? Manter o nível técnico da assistência e humanizar simultaneamente implica em custos. E não tem o apelo ideológicos e afetivo da naturebice.

E aí garota, depois de ter lido o que escrevi, faça o seu parto domiciliar, se você quiser. Mas não contribua para privar o acesso da população à assistência médica.

O que os neuropsicólogos têm a ver com tudo isso? Bom, nós lidamos com os desfechos dessas más-práticas, ajudamos as crianças e jovens com paralisia cerebral, deficiência intelectual, epilepsia e suas famílias. 

sábado, 12 de agosto de 2017

CRIMINALIZAÇÃO DO DIA DOS PAIS

Amanhã é Dia dos Pais. Pretendo aproveitar a comemoração enquanto posso. Será que os meus filhos e netos vão comemorar o Dia dos Pais?

O Dia dos Pais está em extinção. Eu diria que está, até mesmo, sendo criminalizado. A tendência das escolas descoladas (sem perdão pelo cacófato) é abolir o Dia dos Pais. E as escolas mais tradicionais que teimam em comemorar a data são severamente criticadas no FaceBook. Nunca li tanta reclamação contra o Dia dos Pais.

Não é que haja criança sem pai. Todo mundo tem pai, ao menos no sentido biológico. Ainda não inventaram a partenogênese. Toda a criança resulta da meiose de dois gametas, masculino e feminino. Isso é da vida e continuará assim enquanto a tecnologia não tornar a reprodução sexual obsoleta. O que acontece é que muitas crianças não têm pais, no sentido de homens que desempenhem esse papel social e que se vinculem afetivamente a elas, que estejam presentes na sua vida, que as criem e ajudem suas mães a cria-las, que invistam no seu desenvolvimento etc.

O investimento parental masculino é um dos temas mais interessantes da psicologia evolucionária (Geary, 2000, 2005). Ao contrário do investimento parental materno, o investimento paterno não é tão incondicional assim. Em espécies com fertilização interna, como a humana, a evolução do cuidado parental masculino dependeu de três fatores principais: 1) Necessidade do cuidado paterno para o desenvolvimento da prole; 2) Ausência de oportunidades de acasalamento adicional; e 3) Certeza da paternidade (vide Tabela 1).

Tabela 1 - Investimento parental masculino (cf. Geary, 2000)

As transformações sociais, familiares e sexuais ocorridas nos últimos sessenta anos criaram um ambiente inóspito para o florescimento do cuidado paternal. Para um contingente significativo de homens contemporâneos parece mais atraente uma estratégia reprodutiva quantitativa de investir em novas oportunidades de acasalamento do que a estratégia qualitativa de investir na prole. O resultado é um número crescente de crianças que cresce sem pai e que tem seu desenvolvimento ameaçado por essa privação (Woessman, 2015, Ziol-Guest al., 2015).

Nos países do Hemisfério Norte, 14% das crianças vivem atualmente em famílias monoparentais (21% dos EUA) (Woessman, 2015). Esses indivíduos apresentam pior desempenho escolar (vide Figura 1), permanecem menos tempo na escola, têm menor probabilidade de concluir uma faculdade, se envolvem mais com drogas, sexo inseguro e comportamentos anti-sociais e apresentam maior incidência de gravidez na adolescência e vínculos conjugais instáveis.   


 Figura 1 - Déficit relativo no desempenho em matemática de jovens de 15 anos oriundos de famílias monoparentais (Dados do PISA 2012, cf. Woessner, 2015).

A tendência é que essas crianças que crescem privadas de pai reproduzam ao longo da sua vida as condições da família de origem nos seus relacionamentos interpessoais (Belsky et al., 1991, vide Figura 2).

Figura 2 - Transmissão intergeracional de estratégias reprodutivas e suas conseqüências psicossoaiciais (cf. Belsky et al., 1991).

Por mais simpatia que se tenha pelas crianças que crescem sem pais, abolir o Dia dos Pais não vai resolver o problema. Ao contrário, só vai piorar a desagregação familiar e todas suas conseqüências nefastas. Muitos pais biológicos não assumem seus papéis sociais paternais e as crianças  se prejudicam por causa disso. Abolir o Dia dos Pais e “desconstruir” a paternidade por comiseração não vai resolver o problema. Mais esperto seria adotar políticas, costumes e valores que estimulassem a paternidade. De modo que um número maior de crianças e jovens pudesse comemorar o Dia dos Pais.

Referências

Belsky, J., Steinberg, L., & Draper, P. (1991). Childhood experience, interpersonaldevelopment, and reproductive strategy: an evolutionary theory ofsocialization. Child Development, 62, 647-670.

Geary, D. C. (2000). Evolution and proximate expression of human paternal investment. Psychological Bulletin, 126, 55-77. 

Geary, D. C. (2005).  Evolution of paternalinvestment.  In D. M. Buss (Ed.), The evolutionary psychology handbook (pp. 483-505).  Hoboken, NJ:  John Wiley & Sons.

Woessman, L. (2015). An international look at the single-parent family. Education Next, Spring.

Ziol-Guest, K. M., Duncan, G. J., &  (2015). One-parentstudents leave school earlier.  Education Next, Spring.

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

AS HETERO- E AUTO-CONTRADIÇÕES DA IDEOLOGIA DE GÊNERO

A ideologia de gênero é uma estrovenga teórica hetero- e auto-contraditória. Trata-se de uma articulação teórica com a finalidade de justificar políticas de favorecimento de determinadas “minorias” sexuais. Existem ao menos duas espécies de ideologia de gênero: a feminista e a trans. Elas são contraditórias entre si e autocontraditórias.

A ideologia de gênero feminista se baseia na afirmação de Simone de Beauvoir de que ninguém nasce mulher. A pessoa torna-se mulher em função da experiência de vida. Essa afirmação se baseia em uma distinção entre sexo e gênero. Sexo seria uma categoria biológica, relacionada por exemplo com a funcionalidade reprodutiva do indivíduo. O gênero, por outro lado, é uma categoria social pertinente ao comportamento e ao papel social desempenhado.

De acordo com o feminismo de gênero o sexo é irrelevante, o que faz a identidade da  pessoa é o gênero, o qual consiste de uma construção social. O gênero é uma construção social, sendo circunscrito pela cultura e, portanto, relativo. Como o que importa é o gênero e como este é socialmente construído e descolado da realidade biológica, os papéis de gênero podem e devem ser transformados no sentido de uma busca da liberação das mulheres oprimidas pelo patriarcado.

Apesar de se pretender relativista, ou justamente por causa disso, o feminismo de gênero representa uma forma de determinismo cultural absoluto. Os papéis de gênero são absolutamente desprendidos de quaisquer constrangimentos biológicos. Trata-se do império do constrangimento social, uma vez que a experiência individual pouco conta na definição da identidade. Já que essa é uma construção social.

O feminismo de gênero é auto-contraditório. É relativista por um lado, mas justamente por causa disso acaba virando absolutista social. O feminismo de gênero almeja  realizar as fantasias de pessoas frustradas com seus papéis de gênero, mas ao mesmo tempo nega qualquer papel para a experiência individual na construção da identidade. Uma vez que se trata de uma construção social, a identidade de gênero é sobredeterminada pela cultura. No afã de satisfazer os caprichos do indivíduo, o feminismo de gênero acaba furtando o status de agente ao próprio indivíduo.

A vertente trans da ideologia de gênero é não apenas contraditória com o feminismo de gênero mas também consigo mesma. Se o feminismo de gênero representa uma forma de determinismo social absoluto, o transgenderismo situa-se no pólo oposto. Ou seja, trata-se de uma forma de determinismo biológico absoluto.

O transgenderismo trabalha com a hipótese de que a disforia de gênero, ou seja o desconforto que cerca de 0,6% dos indivíduos sentem em relação ao próprio sexo, resulta do fato de que o indivíduo teria um “cérebro de um sexo em um corpo de outro sexo”. A hipótese em si não é absurda. As evidências biológicas indicam que há um dimorfismo sexual na espécie humana, inclusive no cérebro humano. As evidências indicam, entretanto, que o processo de diferenciação sexual tanto do cérebro quanto do organismo como um todo é muito complexo, ocorrendo de forma epigenética e probabilística sob a influência de fatores genéticos,  hormonais e experienciais. Falar, p. ex., de um “cérebro feminino em um corpo masculino”ou vice-versa é uma simplificação grosseira. Daí a inferir que o corpo pode ou deve ser transformado para se adequar ao cérebro é uma insanidade.

As diferenças neuropsicológicas entre homens e mulheres são por demais conhecidas. Realmente, os cérebros de homens e de mulheres diferem sob diversos aspectos. O cérebro da mulher experimenta, p. ex., modificações anátomo-funcionais no hipotálamo relacionadas ao ciclo menstrual, à gestação, parto, amamentação etc. A oxitocina é o hormônio preponderante dos vínculos afetivos femininos, sendo no homem o seu papel reduzido e realçada a função da arginina-vasopressina.

Os homens e as mulheres diferem também do ponto de vista cognitivo e quanto a características de personalidade. As habilidades espaciais alocêntricas de homens costumam ser maiores. As mulheres têm mais habilidades verbais. A agressividade e competitividade feminina e masculina são diferenciadas. As mulheres são mais empáticas e mais motivadas para o carinho e o cuidado etc.

Mas essas diferenças neuropsicológicas entre homens e mulheres não deixam de se revestir de um caráter estereotipado. Correspondem mais a tipos ideais do que à realidade nuançada. P. ex., a média de QI de homens e mulheres é igual. As diferenças entre o QI verbal superior nas mulheres e o QI não-verbal superior nos homens são muito pequenas e somente adquirem significância estatística em amostras gigantescas. A variabilidade populacional dessas características é muito grande, sendo maior nos homens e menor das mulheres. Adicionalmente, a variabilidade intrasexual é maior do que a variabilidade intersexual. Ou seja, existe uma sobreposição entre as distribuições de características neuropsicológicas de homens e mulheres. Há homens mais “femininos” e mulheres mais “masculinas”.

Todos esses fatos indicam que, realmente, as diversidades sexuais e de gênero têm um caráter estereotipado. O que não significa que elas sejam desprovidas de significado na economia cognitiva e social. É prudente, entretanto, não fundamentar decisões pessoais e políticas públicas em estereótipos que constituem apenas representações grosseiras e aproximadas de uma realidade muito mais nuançada.

Tem um exemplo adicional que é matador. A testosterona é produzida em maior quantidade em homens e se associa a diversas características comportamentais masculinas, tais como agressividade e habilidades visoespaciais. Mas a testosterona também regula funções importantes na mulher, tais como o desejo e a iniciativa sexual.

Existem casos-limites que podem ser usados para ilustrar as nuances e indeterminismos subjacentes à diferenciação sexual do cérebro e do organismo. Estou com preguiça agora de fazer uma revisão bibliográfica. Cito apenas alguns casos, sob pena de cometer enganos brutais. O que importa é o sentido geral.

O biólogo holandês Dick Swaab descobriu um gene no hipotálamo de ratos que influencia o comportamento sexual. Polimorfismos desse gene se associam a variabilidade no comportamento sexual. Um dos genótipos se caracteriza por comportamento heterossexual ou homossexual masculino dependendo do nível de iluminação no ambiente. Esse resultado é sensacional porque ilustra tanto uma regulação genética quanto ambiental de um comportamento bastante complexo que é o coito.

O cortisol é um precursor metabólico da síntese de androsteróides. Existem duas situações clinicas associadas a aumento dos níveis de cortisol no feto: a síndrome de hiperplasia adrenal congênita e o tratamento da mãe com corticoesteróides durante a gestação. Nesses casos, as meninas apresentam um risco de apresentar comportamentos caracterizados como tomboyismo. Ou seja, demonstrar preferência por brincadeiras e papéis de gênero típicos do sexo masculino. Esses casos ilustram a discrepância que pode haver entre o sexo geneticamente definido e o comportamento fortemente influenciado pelos hormônios.

A importância dos hormônios sexuais na diferenciação do comportamento de gênero é ilustrada também pela síndrome do testículo feminilizante ou insensibilidade congênita aos andrógeno. Nessa doença genética, a pessoa é cromossomicamente masculina, os testículos produzem testosterona, mas um defeito nos receptores hormonais faz com que a testosterona não atue da forma devida nos tecidos e não ocorra a diferenciação sexual masculina. O resultado é uma pessoa que é geneticamente do sexo masculino mas cujo cérebro e comportamento foram hormonalmente fortemente diferenciados para o sexo feminino. Fenotipicamente, a pessoa é uma mulher que pode ter corpo e desejo de mulher. Só que é uma mulher com  cariótipo 46XY. Quer dizer, o cromossoma Y não está com essa bola toda. Seus efeitos dependem de uma série de influências ambientais, inclusive hormônios fetais. Muitos desses casos apresentam intersexo, ou seja, genitália ambígua. Nesses casos a recomendação médica é pela feminilização.

O gene dimórfico do Swaab, os efeitos dos corticosteróides no feto feminino e a síndrome do testículo feminilizante indicam que  a hipótese do “cérebro feminino em corpo masculino” ou vice-versa para explicar a disforia de gênero não é um absurdo em si, apenas uma esterotipação de uma realidade muito complexa. As evidências sugerem que o cérebro de um homem geneticamente definido pode desenvolver  diversas características dimórficas femininas. Mas isso não é um fenômeno tudo ou nada. Daí não se pode depreender que ele tenha um “cérebro feminino”.

O conhecimento da variabilidade psicobiológica inter- e, principalmente, intrasexual indica que essa noção de cérebro feminino ou masculino representa tipos ideais. Esses tipos ideais são como a média e o desvio-padrão estatísticos. São abstrações que não existem na realidade idiográfica. A variabilidade psicobiológica intrasexual é tão grande que fica muito difícil afirmar que uma pessoa tenha um cérebro de um sexo ou de outro. Se é que isso existe. De mais a mais, biologia não é destino. Ou seja,  a experiência de vida também conta, e muito. A partir do fato de que uma pessoa tem mais ou menos características cerebrais ou comportamentais do sexo oposto não se pode concluir que ela possa ou precise mudar de sexo.

O feminismo e o transgenderismo são, portanto, contraditórios entre si e auto-contraditórias. O feminismo de gênero é absolutista social e o transgenderismo absolutista genético. Ambos são auto-contraditórios porque, a pretexto de compensar uma frustração ou satisfazer um desejo subjetivo, retiram da pessoa toda e qualquer possibilidade de individuação subjetiva. Ou seja, de agência. No caso do feminismo o indivíduo se transforma em uma vítima da cultura e no caso do transgenderismo em uma vítima da biologia.

 Ambos, feminismo de gênero e transgenderismo, contrastam com a concepção científica da diferenciação sexual nos seus diversos níveis: genético e ambiental. A concepção científica contemporânea é de que o desenvolvimento humano ocorre de forma epigenética. Ou seja, depende de interações muito complexas entre múltiplas influências genéticas e experienciais. Os hormônios fetais constituem um fator ambiental que desempenha um papel importante no caso. O feminismo de gênero nega o papel da biologia e o transgenderismo nega o papel do ambiente. A biologia, ao contrário, preocupa-se em compreender como essas diversas formas de influência resultam no dimorfismos anatômico, funcional e comportamental entre os sexos.

Tudo isso não significa que não existam pessoas com disforia de gênero e que elas não mereçam respeito e cuidado. Uma analogia pode ser feita entre a disforia de gênero e o transtorno de identidade/integridade do corpo (Giummarra et al., 2011). Nesses casos, uma pessoa pode p. ex., solicitar atendimento médico porque deseja que o cirurgião lhe ampute um membro. A pessoa tem a sensação de que o membro não lhe pertença e deseja amputá-lo. Esses casos, felizmente, são raros mas existem. O que os médicos devem fazer? Amputar o membro que gera a disforia?

A base biológica do transtorno de identidade/integridade do corpo não é bem conhecida. Mas deve existir. Uma hipótese é que haja algum tipo de disfunção nas redes neurais que sustentam as diversas representações corporais, principalmente em circuitos parietofrontais e na ínsula do hemisfério direito. Mas o fato de que uma disforia em relação a um membro possa ter uma base neurobiológica justifica que o cirurgião realize uma amputação?

Da mesma forma, a base neurobiológica da disforia de gênero não é bem conhecida. Mas deve existir, apesar de que há razões para crer que essa idéia de um cérebro de um sexo no corpo do sexo oposto representar apenas uma estereotipação de uma realidade bem mais complexa. Mas o fato de a disforia de gênero eventualmente ter uma base biológica é razão suficiente para indicar cirurgias e/ou tratamentos hormonais para mudança de sexo?

E caso essas cirurgias e tratamentos hormonais eventualmente se justifiquem, quais serão os seus efeitos? Elas realmente atingirão seus objetivos de propiciar um corpo congruente com a identidade sexual?  Quais são as conseqüências desses tratamentos para o bem-estar da pessoa? E se a pessoa arrepender-se da mudança de sexo? Quem deve financiar esses tratamentos? Qual é a prevalência real da disforia de gênero que justifica a atenção que vem recebendo da opinião pública? Por que as crianças precisam aprender sobre isso na escola? É eticamente aceitável realizar cirurgias de mudança de sexo em crianças e jovens confusos quanto à própria identidade sexual?

Essas todas são questões que permanecem sem resposta. O debate está emocionalmente tão carregado que desperta suspeição quanto aos dados apresentados e aos interesses subjacentes dos partidários e adversários da ideologia de gênero. Uma visão equilibrada sobre o assunto  foi apresentada por Mayer e McHugh (2016 -  o artigo está disponível gratuitamentena internet), dois pesquisadores da Universidade de Johns Hopkins, os quais fizeram uma extensa revisão de centenas de trabalhos científicos. A partir dessa ampla da revisão da literatura é possível concluir que se sabe muito pouco sobre o assunto. E o pouco que se sabe não justifica as intervenções radicais, médicas e sociais, que estão sendo propostas por alguns grupos de lobby.

Voltamos então novamente à questão: Quais são os interesses subjacentes à atenção que o assunto tem recebido na mídia e à insistência com que a ideologia de gênero procura se impor à opinião pública que, majoritariamente, a rejeita?

Eu só consigo encontrar uma resposta a essa questão no pensamento de Nietzsche. O que está por trás do escarcéu todo que está sendo feito com essa história, tratando-a como se fosse o problema mais premente da Humanidade, é a frustração e o ressentimento. Frustração porque a realidade não corresponde aos desejos da pessoa. Ressentimento porque outras pessoas não experimentam esses mesmos sentimentos de frustração e cuidam da própria vida.

Para falar  psicanaliticamente, o problema parece consistir de um narcisismo exacerbado, uma recusa a aceitar o princípio da realidade, uma tentativa de transformar a realidade de modo a adequá-la ao próprio desejo. Mas, se o desejo é do campo do subjetivo, o que justifica que o mundo precise se adequar a ele? O que as outras pessoas tem a ver com a história? Por que as pessoas que não concordam com a ideologia de gênero devem ser criminalizadas como “machistas” ou “transfóbicas”? E, principalmente, está certo o que estão tentando fazer com as nossas crianças nas escolas que adotam a ideologia de gênero como diretriz curricular?



Referências

Giummarra, M. L., Bradshaw, J. L., Nicholls, M. E. R.,. Hilti, L. M. & Brugger, P. (2011). Body integrity identity disorder: deranged body processing, right fronto-parietal dysfunction, and phenomenological experience of body incongruity. Neuropsychological Review, 21, 320-333.

Mayer, L. S. & McHugh, P. R. (2016). Sexuality and gender. Findings from the biological, psychological, and social sciences. Atlantis, 50, 4-143.