domingo, 21 de outubro de 2018

CENSURADORES DE WHATSAPP SÃO HERDEIROS DE PFEFFERKORN - O incendiário de livros judaicos

Nessa época de polarização política, de tentativa de censura politicamente correta e de tentativa de manutenção de uma hegemonia esquerdista de pensamento, as redes sociais estão cumprindo o mesmo papel que a imprensa desempenhou no Século XVI. 

Uma das figuras que ilustra esse artigo é a logomarca da editora de Aldus Manutius, na Veneza do Século XVI. O Aldo teve uma papel importantíssimo na nossa tão vilipendiada Civilização Ocidental. Entre outras coisas, foi o inventor do livro de bolso. Antes do Aldo, os livros eram gigantescos. Precisavam ficar em cima de mesas e alguns, de tão grandes, só podiam ser lidos em pé. O Aldo foi o inventor dos livros portáteis, que poderiam ser carregados e lidos em qualquer canto, em posição sentada, deitada etc. A editora do Aldo foi também uma das pioneiras com os tipos gregos. Naquela época só havia três editoras que imprimiam com tipos gregos, duas na Suiça e o Aldo. O Aldo apoiou então a re-descoberta e disseminação dos autores gregos, que ficaram esquecidos por mais de 1000 anos.

Logomarca da editora do Aldo Manuzio

A história do Aldo e da sua editora é muito edificante. Não podemos esquecê-la jamais. Precisamos reverenciar as pessoas que nos legaram a liberdade de expressão e pensamento. Muitas delas morreram na fogueira. Nós somos fiéis depositários dessa tradição e não podemos abrir mão dela. Para compreender melhor o alcance dessa idéia, voltarei apenas algumas décadas para a época do Regime Militar, antes de dar um passeio pelo Século XVI.

Aldo Pio Manuzio
(1449 - 1515)

Paradoxalmente que possa parecer, na época do Regime Militar, a liberdade de expressão não era tão ameaçada quanto atualmente, já bem avançadinho o Século XXI. Sim, naquela época havia censura. Mas sempre havia algum meio de burlar a censura. E opinião pública era majoritariamente contrária à censura. Ficaram famosas as edições de O Estado de São que traziam poemas de Camões no lugar de matérias que haviam sido censuradas. Quando aparecia um poema do Camões, todo mudo sabia do que se tratava. Todo mundo sabia, também, o quê estava sendo censurado.

A censura era uma espécie de missão impossível. Servia mais como um cavao de batalha da luta política para a esquerda do que como um mecanismo de cerceamento efetivo da liberdade de pensamento e expressão. De uma maneira ou de outra, todo mundo sabia o que estava acontecendo e todo mundo era contra a censura. Todo mundo achava a censura ridícula.

Infelizmente, as coisas mudaram muito e para pior. Aqueles mesmos grupos que lutavam contra a censura, hoje em dia pedem a censura. É inevitável a conclusão de que eram hipócritas. De que somente se opunham à censura da época porque ela cerceava a expressão dos seus próprios pontos de vistas e, além disso, servia como uma ótima arma política.

É inevitável a conclusão de que essa turma que clama por censura hoje e que acusa seus adversários de serem fascistas e positivistas não passa de um de um bando de hipócritas. Eles nunca foram a favor da democracia. Nunca foram contra a censura por princípio. Naquela época eram contra a censura das suas próprias idéias, hoje são a favor da censura das idéias dos outros.

E a censura que vivemos hoje em dia é mil vezes pior do que a censura que ocorria na época dos milicos. Os milicos impunham uma censura externa, autoritária, baseada na coerção estatal. Mas era uma censura que não encontrava eco na sociedade. Uma censura que era facilmente ridicularizada e burlada. Quem acha a censura politicamente correta ridícula hoje em dia? Provavelmente a maioria. Quem tem coragem de dizer isso? Uns poucos, que são perseguidos e vítimas de assassinato moral.

Atualmente é muito pior. Enfrentamos uma censura disfarçada, informal, exercida por grupelhos políticos que se apoderaram da cultura e da universidade. Essa censura atende pelo nome de ideologia do politicamente correto. Ela representa o fim do pensamento, o fim da universidade, o fim da Civilização Ocidental.

Vou contar uma historinha pessoal. Quando estava na universidade, na Década de 1970, eu tinha simpatias esquerdistas. Talvez minhas simpatias fossem vagas e entremeadas de dúvidas. Nunca fui um crente. Mas sim, confesso, eu tinha simpatias esquerdistas. Das quais fui me curando à medida que amadureci.

Participei das lutas da minha geração: pela liberdade sexual, contra a censura, pelas eleições diretas, pela anistia ampla, geral e irrestrita etc. E não me arrependo. Eram coisas importantes na época. Era o que se podia fazer. 

Não surpreende, portanto, nem um poquinho, que eu não aturasse as aulas de Estudos de Problemas Brasileiros (EPB), que éramos obrigados a fazer na época. No currículo de todos os cursos tinha duas disciplinas de Educação Física e duas de EPB. Era um porre para mim. Não sei qual eu odiava mais. Meu segundo professor de EPB, lá pelo ano de 1979 ou 1980, era um monarquista afiliado à TFP. O cara vinha sempre dar aula de gravata borboleta. Eu não aturava a aula dele. Era uma multidão em um auditório. Eu assinava a lista e caia fora. 
Daí chegou a hora da avaliação. Eu precisava ser aprovado naquele treco para poder me formar. A avaliação consistiu em fazer uma resenha de um livro. Eu escolhi o livro "Formação econômica do Brasil", do Celso Furtado, e me aventurei a fazer a resenha do troço. (Outro dia dia o Ramiro descobriu esse exemplar todo rabiscado na minha biblioteca e veio gozar da minha cara. Quis rir de mim porque eu tinha estudado o Celso Furtado. Falei pra ele que sim, que eu cometi meus pecadilhos na juventude e não foram poucos. Só que eu me redimi.)

Dada a minha estupidez na época, vocês podem imaginar como a minha resenha era simpática ao livro do Celso Furtado. Talvez fiquem pensando que eu fui reprovado, perseguido pela polícia etc. Nada disso aconteceu. Tirei uma nota 100 e, ainda por cima, o professor elogiou o meu trabalho. O trabalho era bom. Eu não rabisquei o livro à toa. Estudei mesmo, procurando compreender e aprender. 

Pergunto agora, como é a situação hoje em dia? O que acontece com os alunos e professores conservadores que ousam manifestar alguma opinião herética, discordante da hegemonia marxista cultural? Eu já fui linchado moralmente na universidade, simplesmente por me opor a uma invasão e ousar continuar com minhas atividades de ensino, pesquisa e extensão. Suprema ousadia do bofe: ensino, pesquisa e extensão! A universidade não serve para isso. Atualmente, a universidade se pretende um instrumento de transformação social, de reforma do mundo. E ai de quem ouse contrariar.

Não surpreende, portanto, que alguém tenha a idéia de jerico de querer censurar o WhatsApp. As tias fofocando nas redes familiares representam a maior ameaça conservadora à hegemonia do marxismo cultural.

Mas o pior de tudo é que a censura atualmente não é mais uma imposição externa, de um estado opressor. Trata-se de um tipo pior de auto-censura. Auto-imposta por gente que que não estuda, que perdeu o senso comum e que fica repetindo por aí uma série de palavras de ordem extravagantes. Uma série de deepieties. (Deepieties é o termo criado pelo filósofo Daniel Dennett para se referir às pieguices pseudo-profundas que caracterizam o ideário politicamente correto contemporâneo.)

(Se você fosse furungar na minha biblioteca há alguns anos atrás se surpreenderia com a quantidade de porcaria de Marx, Engels, Foucault, Lacan etc. que eu li na vida. Há uns anos vendi tudo a quilo para um sebo. Oni infame do Celso Furtado sobreviveu, sei eu lá porque cargas d'água à faxina. Vá furungar na biblioteca dos intelectuais de esquerda para ver se eles leram alguma coisa de verdadeira ciência, estatística etc. Vá furungar nas mentes desses jovens Helenões e veja se eles têm alguma idéia que não seja uma pieguice pseudo-profunda, ouvida de algum professor maconheiro de  História.)

Mas o  pior, o pior mesmo, não são os ignorantes. Esses são idiotas úteis, Mais abjetos são os covardes, que percebem a patranha e ficam de bico fechado. Mais abjetos ainda são os empresários, donos de redes sociais na internet, que se prestam a impor uma censura privada. 

Quando a situação está muito crítica, quando não se sabe muito bem como interpretar os eventos e qual é a saida eventual de uma crise, nada melhor do que olhar retrospectivamente. A História sempre tem alguma lição para ensinar. Esse povo que hoje pede censura do WhatsApp ignora cinicamente que somente pode fazer isso, que somente pode expressar suas idéias e, até mesmo, pedir que as idéias dos outros sejam censuradas, porque alguém no passado lutou pela liberdade de opinião. Liberdade essa que o pessoal da esquerda não perde oportunidade para tentar suprimir.

Acho que uma maneira de entender o que está acontecendo hoje é voltar um pouquinho para o Século XVI. Para a época em que a imprensa se difundiu e tomou conta do mundo. Em escala incomensuravelmente ampliada, a internet está fazendo atualmente o mesmo que a imprensa vez no Século XVI. Esse pessoal que teima em censurar a internet não está com nada. Estão condenados ao lixo da história. Vão fazer companhia a personagens como Johannes Pfefferkorn, sobre o qual falo a seguir. Duas historinhas são muito edificantes para compreender o momento atual. A primeira delas é do Lutero (Massing, 2018). A segunda é do Johannes Reuchlin (Price, 2010).
A história do Lutero é muito simples. Ele apenas sobreviveu à fogueira por causa da imprensa. OK, ele teve o apoio de muita gente poderosa como Frederico, o Sábio, Eleitor da Saxônia. Mas, em última análise, ele só não virou churrasquinho como o Jan Hus por causa da imprensa. Alguns poucos dias após haverem sido pregadas na porta da igreja em Wittenberg, as 95 teses de Lutero já haviam sido publicadas em praticamente todas as cidades alemãs importantes. Em poucas semanas já havia traduções nos principais países europeus. O estrago estava feito.

Acrescente-se que Lutero era um exímio polemista. Ele praticamente só escreveu panfletos. E os seus panfletos eram escritos em uma linguagem acessível e virulenta, debochada, escatológica inclusive. Eram ferramentas de luta. E os editores corriam atrás dos seus escritos, imprimindo tiragens sucessivas e espalhando-as, em diversos idiomas, pela Europa.

Quando assumiu o seu cargo de professor de Estudos Bíblicos em Wittenberg, Lutero estava envolvido com o estudo dos Salmos. Os Salmos são, notoriamente, um dos textos mais dificeis da Bíblia, E as traduções em Latim existentes na época deixavam muito a desejar. Lutero logo percebeu que precisava aprender hebraico, se realmente quisesse compreender alguma coisa dos Salmos. Suprema ironia. Lutero, um dos principais anti-semitas da História, compreendeu que precisava aprender hebraico se quisesse estudar o  negócio a sério.

Mas não foi apenas o Lutero que teve essa idéia. Vários humanistas do Século XVI perceberam que a Vulgata, a tradução da Bíblia feita por São Jerônimo, deixava muito a desejar. Erasmo, p. ex., aprendeu grego para estudar e traduzir o Novo Testamento.

Um dos caras mais interessantes dessa época se chamava Johannes Reuchlin. Era um advogado, filólogo e teólogo amador de Stuttgart. Reuchlin fez parte desse movimento de análise filológica e fixação do texto da Bíblia que ocorreu no Século XVI. Uma das suas sacações foi que precisava aprender hebraico, se realmente quisesse levar o estudo da Bíblia sério. Começou a estudar sozinho, mas logo se deu conta de que o negócio era complicado. Passou então dois anos na Itália, aprendendo hebraico. Na volta, publicou uma gramática do hebraico e guia de estudos bíblico-filológicos para cristãos interessados nos livros do Velho Testamento. A obsessão de Reutlin era buscar evidências no Velho Testamento que antecipassem a vinda de Cristo.


Johannes Reuchlin
(1455-1522)

Pois bem, na mesma época vivia um teólogo chamado Johannes Pfefferkorn (literalmente: "grão de pimenta"). Esse Pfefferkorn era um judeu convertido que resolveu pegar no pé dos seus ex-correligionários. Associou-se aos monges beneditinos da Inquisição alemã e aos professors de teologia em Colônia e passou a ser uma verdadeira pimenta nos olhos dos judeus e do Reuchlin. 

O Pfefferkorn compreendeu que a pujança dos judeus vinha da sua tradição literária. Iniciou então uma campanha para queimar todos os livros judeus que, supostamente, divergissem da doutrina cristã. Entre outras coisas, conseguiu que o Sacro-imperador Romano-Germânico Maximiliano I nomeasse uma comissão para examinar o material bibliográfico judaico apreendido e decidir se deveria ir para a fogueira ou não.

Pfefferkorn como magistrado
humilhando o suplicante Reuchlin

Mas Pfefferkorn cometeu dois erros fatais para sua  empreitada. Escolheu a cidade errada e um membro errado para essa comissão de scholars notáveis. A cidade errada foi Frankfurt. O Pfefferkorn resolveu iniciar sua campanha contra a cultura judaica por Frankfurt. Foi a pior escolha possível. Frankfurt era justamente a cidade onde ocorria, duas vezes por ano, a Feira do Livro. Já naquela época a imprensa era uma indústria rentável. Basta mencionar que Erasmo foi o primeiro intelectual a viver da renda auferida pela venda dos seus livros. E os livros de Erasmo e Lutero vendiam que nem pão quente. Uma tiragem após a outra. O Lutero só não ficou rico porque não cobrava pelos seus escritos. Deixava o lucro para os editores. E os livros dos judeus não vendiam muito menos. Era um negócio muito rentável. Portanto, não foi surpresa nenhuma quando o Conselho Municipal de Frankfurt se opôs ao projeto de Pfefferkorn.  

A segunda má escolha do Pfefferkorn foi colocar o Johannes Reuchlin na tal comissão. O Reuchlin escreveu um panfleto defendendo logica e ardorosamente a preservação e estudo da Cultura Judaica como sendo, inclusive, importante para o próprio Cristianismo. Não deu outra. Além de mandar seu panfleto para a Universidade de Colônia e para o Arcebispo, Reuchlin publicou o texto. Foi um sucesso na Feira de Frankfurt. E, novamente, o estrago da divulgação e disseminação inexorável se contrapôs à censura. Reuchlin é outro, que só escapou da fogueira porque botou a boca no trombone. A sobrevivência da Cultura Judaica foi auxiliada, então, de dois modos pela imprensa: pelos interesses comerciais dos editores e pela disseminação rápida e eficiente de conteúdos alternativos ao pensamento hegemônico.

Esse povo que está censurando o WhatsApp e o FaceBook não está com nada. Não adianta acusar os outros dos seus próprios crimes. Nós, conservadores, nem teríamos imaginação para criar fakenews que superassem em hediondez os crimes do Mensalão, Petrolão e outros, como a censura, que continuam ocorrendo. Essa turma que censura o WhatsApp e o FaceBook é formada pelos herdeiros do Johannes Pfefferkorn. O que eles não contavam é com a astúcia dos Reuchlins contemporâneos. Essa turma está condenada à lata de lixo da História. Não vão conseguir botar a liberdade de expressão de joelhos.


Referências

Massing, M. (2018). Erasmus, Luther and the fight for the western mind. New York: HarperCollins.

Price, D H. (2010). Johannes Reuchlin and the campaign to destroy Jewish books. Oxford: Oxford University Press.

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