O conceito humboldtiano de
universidade, caracterizada por unidade entre pesquisa e ensino, com ênfase na
pesquisa, autonomia e liberdade de cátedra, universalidade e Bildung, além de
meritocracia está ameaçado. Os principais riscos são a massificação do ensino
superior, a banalização do ensino universitário como transmissão de
conhecimento à distância e o ativismo político fundamentado na ideologia
politicamente correta. Neste artigo eu discuto a iniciação científica, que
junto com a pós-graduação, constitui a maior aproximação possível ao ideal
humboldtiano. A universidade humboldtiana sempre foi mais um mito do que uma
realidade. Apenas uma diretriz, um ideal. A iniciação científica, tal como
praticada nas universidade federais e em algumas boas universidades privadas
brasileiras teima em persistir como tentativa de realizar esse ideal.
Comecei a estudar na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul em março de 1975. Confesso que foi um choque. Eu
vinha dos Jesuítas e antes dos Salesianos. Além de oferecerem um ensino de
altíssima qualidade, os padres eram muito liberais. Surpreendentemente
liberais. Acreditavam que os adolescentes tinham discernimento para administrar
suas vidas, encarando as conseqüências. Era uma aposta arriscada, mas ao mesmo
tempo a coisa funcionava. Os professores eram de altíssima qualidade,
carismáticos e nunca faltavam às aulas. Os padres estavam sempre disponíveis
para conversar e discutir o que quer que fosse.
Quando entrei na Faculdade de
Medicina, a Universidade Federal me pareceu ser mais um circo do que uma instituição
de ensino e pesquisa. Só para dar uma
idéia. Tinha professor que era carismático e professor que era uma besta quadrada.
Tinha professor que vinha dar aula e professor que simplesmente não aparecia.
Tinha horário fantasma. A manhã começava com uma aula teórica às sete e meia da
manhã. Às oito e meia tinha uma aula prática e às onze horas uma aula teórica
de outra disciplina. Só que a turma de 200 alunos era dividida em grupos e cada
grupo fazia aula prática apenas uma vez por semana. Mas isso não importava, a
carga horária era contada como se tivéssemos aula prática todos os dias. Quando fiz cirurgia, p. ex., só
estagiei na cirurgia plástica e cirurgia geral. Das outras especialidades cirúrgicas
a Faculdade não me proporcionou a menor chance de tomar conhecimento.
O meu professor de patologia
geral era um sujeito extremamente carismático e original. Era um gordão que
chegava na aula com um timer. Ele ajustava o timer para 45 minutos e dava a aula
dele. Quando o timer despertava, ele parava de dar aula e aparecia uma dona com
um cafezinho. Ele tomava seu cafezinho, ajustava novamente o timer e retomava
sua aula. Esse professor era realmente muito original. Ele tinha escrito um
livro no qual interpretava a patologia em função da teoria geral dos sistemas
de von Berntalanffy. Naquela época isso era uma verdadeira ousadia, uma façanha
intelectual. Sabia prender atenção e mexer com a imaginação dos alunos. E tinha
estilo.
O professor de patologia médica
também era carismático e erudito. Mas também era autoritário e acho que estava
cansado de dar aulas. Cansado da cretinice dos alunos. Ele tinha os tópicos de
suas aulas anotados em umas folhas amareladas de eletroencefalograma. Antes de
começar a a ula ele consultava seu alfarrábio: “Hum, glomerulonefrites. Vamos
ver. Tem umas quarenta e tantas. Os alunos não precisam aprender tanta coisa. Vamos
riscar essa, e essa e mais essa”. Isso era lá nos idos de 1970. Se ele
continuou nessa toada, suponho que discusse apenas um ou dois tipos de
glomerulonefite na bica da sua aposentadoria.
Logo eu percebi que teria que me
virar por conta própria. O método de viração própria (MVP, vide Figura 1) ainda é o método mais popular
nas universidades federais brasileiras. Eu
entrei num desespero de que não iria aprender nada, de que iria me formar
ignorante e incompetente e comecei a me virar. Nunca fiz uma iniciação
científica formal. Mas tinha toda uma agenda extracurricular. Estagiei em
laboratórios de genética, neuroanatomia, anatomia patológica e patologia
clinica. Nas férias auxiliava meu pai a operar e a atender a população carente
em uma entidade beneficente. Em 1978, quando estava no quarto ano, descobri as
enfermarias de neurologia da Santa Casa e só saí de lá quando terminei a
residência de neurologia e neuropediatria. Até plantonista da UTI de um hospital
picareta na periferia de Porto Alegre eu fui.
Figura 1 - Pedagogia na Faculdade de Medicina
Acho que, de tanto me virar,
acabei aprendendo algumas coisas. Certamente não teria aprendido tanto, se
tivesse ficado apenas por conta da instrução formal. O MVP é realmente o mais
eficiente e constitui o diferencial das universidades federais. O MVP ajuda a
resolver o paradoxo, explicando as razões pelas quais as universidades federais
são ao mesmo tempo tão desorganizadas e formam alunos tão bons. Mas é preciso
fazer justiça também ao processo seletivo. Com a matéria prima humana
selecionada não tem muito como fazer porcaria. Por mais que se tente.
Sempre gostei de ensinar. No
tempo da residência eu ensinei vários colegas a ler em inglês. Nunca me furtava
de ver um paciente e de ajudar a um colega. Quando trabalhei no Hospital São
Lucas da PUCRS, adorava ficar conversando com os doutorandos e explicando-lhes
o que eu sabia. Muitos são meus amigos até hoje.
Ao entrar na UFMG, passei a
colocar em prática minhas inclinações e convicções através da iniciação
científica (IC). Junto com a pós-graduação stricto sensu, a IC constitui a
tentativa brasileira de implementar o ideal humboldtiano de universidade. Ou
seja, de pesquisar aprendendo/ensinando e ensinar/aprender pesquisando. Quando
fiz meu doutorado lá na Alemanha, os professores ficavam admirados de ver como
eu pegava os alunos de graduação e botava os caras para trabalhar comigo, fazia
seminários com eles, ensinava-os a mexer com os equipamentos etc. Lá, esse tipo
de atividade só acontecia na pós-graduação.
Uma boa IC funciona assim. O
professor e o aluno fazem uma reunião. O aluno diz que quer trabalhar, que quer
colocar a mão na massa. O professor sugere alguns temas e em comum acordo com o
aluno coloca uma questão de pesquisa, dá umas dicas bibliográficas e desemburra
o sujeito na pesquisa bibliográfica sistemática (vide Figura 2).
Figura 2 - O contrato de iniciação científica (IC)
Passado um tempo o aluno volta e
diz que não sabe como resolver o negócio (vide Figura 3). O professor fala
então assim: “Cara, eu também não sei! Se eu soubesse, eu mesmo faria o negócio
e não ficaria pedindo sua ajuda. Vá se virar, descubra!” É dessa forma que o
aluno aprende pesquisando. O aluno se defronta com um problema real de pesquisa,
com uma questão nova e excitante, que merece sua atenção e seu esforço. O aluno
trabalha que nem gente grande, auxiliando o professor nas pesquisas deste. O
aluno não fica replicando experimentos consagrados, mas encara o desafio de um
teste de hipóteses, cujo resultado pode resultar ou não rejeição da hipótese
nula. O professor também sai no lucro porque, além de ensinar também passa a
contar com mão de obra barata e altamente qualificada para tocar sua linha de
pesquisa. No final, todos lucram com as publicações e apresentações em
congressos.
Figura 3 - A supervisão de iniciação científica (IC)
E o aluno vai adquirindo
habilidades autodidáticas e de prática profissional baseada em evidências que
lhes serão úteis mesmo que direcione sua carreira para a prática profissional e
não para a pesquisa. A IC é realmente o grande diferencial das universidades
federais. É uma oportunidade ímpar de adquirir habilidades de testagem de hipóteses,
as quais fundamentarão uma prática profissional cientificamente orientada, constantemente
atualizada, mais eficiente e mais excitante. A IC constitui um modelo de
implantação do ideal humboldtiano.
Sempre oriento os alunos quanto à
importância da IC. Infelizmente, muitos alunos não podem fazer IC porque
trabalham. O número de bolsistas também é reduzido. A IC é o que as
universidades federais têm a oferecer de melhor para os alunos de graduação. E
compensam sua desorganização gerencial, lentidão burocrática, greves
recorrentes e ausência de meritocracia na avaliação do desempenho dos
professores e funcionários. Para muitos alunos a IC é tão envolvente, que eles
caem na tentação de faltar as aulas mais chatas. Eu sempre lhes digo: “Meus
filhos, assistir aulas é um negócio super importante. Não faltem aulas!”
Um dia eu estava tomando uma
cerveja com um ex-aluno de IC, muito querido e brilhante. O moço me falou assim:
“Você fica tirando onda com o construtivismo. Mas, na verdade, você é o maior
construtivista que tem”. Fui obrigado a dar razão ao jovem. Na verdade ele
intuiu que além de ser uma tentativa de concretizar o ideal humboldtiano de
universidade, a IC constitui também um paradigma de aplicação da filosofia
construtivista de ensino.
Só que a IC é o construtivismo
que funciona. O construtivismo aplicado a indivíduos jovens, no apogeu do seu
brainpower, altamente selecionados, inteligentes e motivados. Nâo tem como não funcionar.
Só se o professor for muito ruim. Bem diferente é a situação de crianças
pobres, hipoestimuladas, com déficits cognitivos mais ou menos específicos e que
são jogadas em sala de aula para aprender a ler as palavras e fazer as contas
sem qualquer tipo de tutoria eficiente. Eu diria até que, nesse caso não se trata
de construtivismo, mas sim de MVP selvagem.
O salário nas universidades
fedrais é consideravelmente mais baixo do que na iniciativa privado. O ambiente
intelectual, dominado pela ideologia politicamente correta, pelo ativismo
político e pela pseduopesquisa, deixou há muito de ser estimulante. Eu diria
que é, até mesmo hostil, para quem acredita no ideal humboldtiana. O que tem
compensado até agora é a IC. É um privilégio poder trabalhar com jovens tão
inteligentes e motivados. Um privilégio maior ainda é acompanhar os alunos da
IC para a pós-graduação e desta para a inserção profissional. Acho que, por
enquanto, está valendo a pena. Mas só vou tirar uma conclusão definitiva depois
de me aposentar. Será que existe vida inteligente para além da IC?
Fico me lembrando dos tempos em
que eu aproveitava todas as minhas folguinhas para trabalhar um pouco na
Neurologia da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Eu ficava o tempo
todo no encalço dos residentes. Realizava as tarefas mais comezinhas, como
correr no laboratório para buscar resultados de exames, pedir a opinião de
especialistas, pedir exames de graça fora da Santa Casa, acompanhar pacientes
quando realizavam exames fora etc. Em troca eles me proporcionavam ensinamentos
valiosos. Assim fui aprendendo a conectar o que eu lia nos livros com a
prática.