O
sistema de universidades federais no Brasil está correndo perigo. E as ameaças
são tanto internas quanto externas. Mais internas do que externas. Vou começar
examinando as ameaças internas.
Durante
muitos anos as universidades federais serviram com um sistema meritocrático de
ascensão social, junto com as Forças Armadas e a Igreja. O sistema de
universidades federais formava uma elite, preparada para assumir posições de
liderança na sociedade. Essa lógica se rompeu na medida em que o sistema
universitário federal cresceu de modo exponencial e desordenado. O numéro de
vagas foi ampliado e os critérios de ingresso tanto de alunos quanto de
professores foram sendo gradualmente afrouxados. Novas universidades foram
criadas em números grandiloqüentes. Na maioria das vezes sem garantia de orçamento,
sem estruturua física, sem recursos materiais e humanos. Sem as mínimas
condições de atuar na área de pesquisa.
A
expansão do sistema federal de ensino superior não é ruim. Ao contrário,
poderia ser muito benéfica se fosse acompanhada de uma expansão condizente do
ensino médio técnico e de uma redefinição dos papéias institucionais. As
universidades federais brasileiras sempre se orientaram pelo modelo humboldtiano
de unidade entre ensino, pesquisa e extensão. Além do do trinômio
ensino-pesquisa-extensão, a universidade humboldtiana se fundamenta nos pilares
da Bildung (formação no mais amplo sentido), universalidade (do conhecimento),
autonomia (liberdade para realizar pesquisa básica, não necessariamente
aplicável), liberdade de cátedra e meritocracia.
Do
modo como foi conduzida a expansão do sistema de universidades federais colocou
em cheque o caráter humboldtiano de pelo menos uma parte do sistema. Com raras
e honrosas exceções, as novas “universidades” não conseguem se dedicar à
pesquisa. E em muitos casos nem ao ensino. A “fartura” é demais. “Farta” de
tudo, Sobra apenas a irresponsabilidade dos seus idealizadores e a garra e
desespero dos seus implementaddores. Nesse sentido, elas ainda não são
universidades verdadeiras. Se é que um dia chegarão a sê-lo. A expansão do
sistema federal de educação superior faz com que o mesmo passe a funcionar como
universidade de massa ou instituições de ensino profissionalizante superior.
Não
tem nada de errado com o conceito de universidade de massa. Elas são uma
tendência no Mundo todo. À medida que avançamos na Era Cognitiva e as
exigências educacionais se tornam mais complexas, surge uma demanda crescente
por universalização do ensino superior.
Mas será que essa demanda por maior diferenciação educational e
profissional não poderia ser suprida pelo ensino médio profissionalizante, o
qual tem sido tradicionalmente desprezado no nosso País? Ou será que a
construção de um sistema federal de universidades de massa precisa ocorrer às
custas do sistema humboldtiano? Não teria sido melhor criar um sistema
diferenciado, expandindo a rede e preservando aquilo que já havia sido
alcançado?
O
sistema de universidades federais do Brasil ainda é uma das melhores coisas que
o País já tinha criou. Uma reserva de capital mental e social. Além dessa
função de ascensão social e de formação de uma elite, as federais sempre
atuaram na promoção da diversidade e debate intelectual, resistiram bravamente
ao cerceamento da opinião durante os anos de Regime Militar e, nas últimas
décadas, vêm alcançando resultados notáveis na pesquisa. Aumentando notadamente
a contribuição do Brasil para o acúmulo de conhecimento. Os progressos foram
enormes. O número de publicações internacionais de autores brasileiros e a
cooperação com pesquisadores de outros países aumentou de forma incrível. O
banco de dados Periódicos CAPES permite que os docentes e estudantes
brasileiros tenham acesso imediato a praticamente toda a literatura científica
internacional. O nosso sistema de pós-graduação se expandiu e consolidou. A
iniciação científica é uma das atividades mais notáveis que se desenvolve nas
universidades brasileiras, sendo importante tanto para a formação de pesquisadores
quanto para a formação profissional. Tudo isso vinha ocorrendo em um clima de
liberdade acadêmica, de gestão colegiada. Tradicionalmente o ambiente era
arejado, diversificado, estimulante.
Todas
as características mencionadas faziam com que a carreira universitária atraísse
alguns dos jovens mais talentosos nas diversas áreas do conhecimento. Os
salários são consideravelmente mais baixos do que na iniciativa privada. Mas a
estabilidade no emprego, a aposentadoria integral, o ambiente arejado, a gestão
colegiada, a possiblidade de trabalhar com pesquisa e de constantemente se
rejuvenescer na interação com jovens talentosos constituam um diferencial na
carreira.
A
partir de uma perspectiva nacionalista-desenvolvimentista, as universidades
federais brasileiras justificavam também sua existência por razões
estratégicas. As instituições privadas de ensino no Brasil nunca favoreceram a
pesquisa. E, com raríssimas exceções, não há nada indicando que a pesquisa
venha ser cultivada a médio prazo nas instituições privadas. O sistema federal
cumpre, portanto, esse importante papel.
O
exemplo de países como a China, que estão investindo maciçamente na educação
superior e pesquisa é muito ilustrativo. Deveria ser seguido, com a ressalva de
que, como não há liberdade de pensamento na China, o modelo deles fatalmente
vai encontrar seus limites. O desenvolvimento científico-tecnológico do nosso
País exigiria a consolidação e aprimoramento do sistema humboldtiano e não o
seu desmonte como está acontecendo. Pelo andar da carruagem estamos apenas
assegurando que a nossa dependência científica e tecnológica perdure ou,
inclusive, aumente.
Mas
os docentes e pesquisadores brasileiros têm o couro duro e sempre souberam
lidar com a falta de financiamento e
reconhecimento por parte das autoridades. Tanto que progredimos o quanto
progredimos, apesar da escassez de recursos. Fomos nos especializando em tirar
leite de pedra. E essa nossa capacidade é reconhecida pelos nosso colaboradores
internacionais. Muitas vezes ouvimos colegas de outros países comentando: “É
incrível o tanto que vocês conseguem fazer com tão pouco!”. É claro que não
temos qualquer vocação franciscana. Mas nos orgulhamos de aprender a superar as
adversidades e a escassez de recursos. Talvez isso explique o enorme prestígio
social de que gozam as universidades federais no Brasil.
Eu
me considero um dos tantos jovens mais ou menos promissores que resolveu
apostar no sistema de universidades federais. Há mais de trinta anos desprezei
uma carreira que parecia promissora como neuropediatra e resolvi apostar numa
cadeira acadêmica como neuropsicólogo. Nunca tive ilusão de que seria um grande
pesquisador. Minha formação matemática é deficiente para isso e eu sabia que
enfrentaria a falta de recursos. Dessa forma, sempre encarei a minha missão
como sendo mais relacionado ao ensino do que à pesquisa. Sempre pensei que
poderia dar uma enorme contribuição na formação de recursos humanos em
neuropsicologia. E acho que, modéstia à parte, tenho sido muito bem sucedido.
Se conseguisse alguma coisa com a pesquisa, viria de inhapa. Como, de falto,
alguma coisa acabou vindo.
Essas
ameaças internas têm sido agravadas nos últimos anos pela privatização da
universidade por grupos políticos de esquerda, mais interessados em promover
sua agenda política do que o ensino, a pesquisa e a extensão. Não apenas no
Brasil, mas no Mundo inteiro, assistimos a uma ascensão das formas de
pensamento politicamente correto e o surgimento de uma verdadeira hegemonia
totalitária. A diversidade de pensamento só é admitidade do lado esquerdo de
variação do espectro. A diversidade política e religiosa é rejeitada através da
instauração do crime de opinião. Se um professor ou estudante é contra o
feminismo radical, ele é “machista”, se ele é contra a ideologia de gênero é
“homofóbico”, se ele é contra o sistema de cotas, é “racista”, se é contra o
distributivismo populista, é “fascista” etc. O clima nas universidades é tudo
menos propício ao debate. Quem diverge da ortodoxia politicamente correta
sente-se asfixiado. É batatolina, quando os ungidos do pensamento politicamente
correto perdem o argumento, eles apelam invevitavelmente à reductio ad Hitlerum
ou lei de Godwin. Só que quem joga a carta da acusação de nazismo, já perdeu a
discussão. Isso só serve para gerar perseguição de grupos raivosos contra
indivíduos heterodoxos. Assim, o feitiço acaba se voltando contra o próprio
feiticeiro: Eles sempre cometem aquilo de que acusam os outros.
Se
a coisa continuar assim, acho que a universidade humboldtiana vai morrer
estrangulada pelo pensamento politicamente correto. Não só no Brasil, no Mundo
todo. Esse pessoal de esquerda não é nada original. Eles ficam copiando os
norte-americanos até nisso. A ideologia politicamente correta é a principal
ameaça à universidade. E ela vem de dentro e não de fora. A supremacia do
pensamento politicamente deriva, em grande parte, da própria liberdade
acadêmica oferecida pelas universidades humboldtianas ocidentais. O preço está
sendo cobrado. O ovo da serpente está sendo chocado e pode acabar com as
federais a partir de dentro. O sistema sempre foi tão tolerante à diversidade
de opinião, que acabou monopolizado por grupos de ativistas, mais interessados
em transformar a realidade do que em compreendê-la.
A
situação é mais grave na área das ciências humanas. Segundo Alves-Mazzotti e Gewandsznajder (1999),
a reflexão, análise conceitual e hermenêutica são substituídas pelo
ativismo puro e simples. Referenciais
teórico-metodológicos são selecionados com base em modismos, principalmente
importados da França, e não a partir de uma reflexão crítica sobre a natureza
dos fenômenos a serem investigados. A testagem de hipóteses é rejeitada como
característica fundamental do método científico. São realizados estudos descritivos
e qualitativos, sem qualquer tipo de tentativa de matematização em tópicos cujo
conhecimento já avançou a ponto de permitir o teste de hipóteses. Muitos temas
refletem idiossincrasias pessoais ou contextuais específicas e carecem de
relevância teórica ou social. A adoção de referenciais teórico-metodológicos
fracos forclui a publicação em veículos científicos de impacto. A divulgação
restrita dos resultados em periódicos de pouco impacto, aliada à utilização de uma
linguagem hermética restringe a divulgação dos resultados a um círculo de
iniciados. Os iniciados que comungam em uma determinada igreja teórica são
impérvios ao debate. Qualquer diferença de opinião é interpretada como ofensa
pessoal ou dissensão ideológica. A divergência equivale a crime de opinião,
sendo ostracizada pelo group thinking.
Um
ciclo vicioso se fecha quando o pouco conhecimento do estado do conhecimento e das
discussões teórico-metodológicas travadas na área faz com que muitos
pesquisadores fiquem restritos à sua própria prática - ao seu umbigo, por assim
dizer - dela derivando o seu problema de pesquisa e a ela buscando retornar com
aplicações imediatas dos resultados obtidos (Alvez-Mazziotti &
Gewandsznajder, 1999). O desenlace é a irrelevância de tais estudos, cuja origem
é o narcisismo teórico-metodológico. Como esses estudos costumam ser restritos
a uma situação muito específica com baixo nível de teorização e utilização de
metodologia fraca, os resultados não podem ser generalizados. São relevantes
apenas para uma comunidade de iniciados que compartilha determinados
pressupostos teóricos e/ou interesses pessoais e políticos. A falta de controle
da hipótese nula ou critério de adjudicação entre hipóteses concorrentes transforma
tais estudos em profecias auto-realizáveis dos pressupostos prévios ou
pré-conceitos dos seus autores. Vão me
dizer que isso aí não é um tipo de narcisismo dos mais brabos?
Essas
me parecem ser as ameaças internas. Como se elas não bastassem, tem também as
ameaças externas. Ao contrário do que a esquerda gostaria de pensaria, as
universidades federais não estão ameaçadas por nenhum governo ditatorial. Só
compram essa idéia os jovens incautos que não viveram outras época menos
iluminadas.
A
principal ameaça contra o sistema federal de universidades vem da própria
sociedade. A sociedade dá mostras de cansaço de pagar impostos e receber muito
pouco em troca. Como mencionei anteriormente, as universidades federais ainda
gozam de grande prestígio. Mas, até quando?
Se
o pessoal discente, docente e administrativo continuar abusando, incorre-se no
risco de que o pagador de impostos acabe se cansando mesmo e venha a dizer uma
basta. Basta contabilizar quantos meses por ano as universidades federais ficam
paralisadas por ano por uma ou outra greve. As greves são anualmente
recorrentes. O efeito sobre os professores e alunos é devastador. Fica-se meses
parados ou com o serviço prejudicado. Enquanto as greves duram, a vida fica
suspensa. O calendário de férias é perturbado e os docentes não podem gozar das
merecidas férias com seus filhos. Os formandos têm sua colação de grau
atrasada, prejudicando seu lançamento na carreira profissional. Tudo isso em
nome de ideologias alienígenas à sociedade, à maioria do aluna e a grande parte
do professorado e funcionários.
A
mais nova moda é a invasão de faculdades. Como todas as outras estratégias não
funcionaram, os radicais de esquerda partiram para as medidas autoritárias e
coercivas, de cercear o direito de funcionários, professores e alunos irem e
virem, exercerem seu trabalho, estudarem etc.
Já
discuti muito as razões pelas quais abjuro as invasões com a maior veemência de
que sou capaz. É claro que eu fico irritado. Mas estou me acalmando. Estou,
cada vez mais, imerso no meu trabalho e nas minhas reflexões. Mas, não deixo de
sentir pena dessa turma. Eles são uns pobres coitados que estão desprezando
talvez a maior oportunidade que vão ter na vida, a oportunidade de estudar em
uma universidade federal.
Com
tanta gente que adoraria estudar em uma universidade federal, alguns ungidos
ficam se dedicando a constranger funcionários, professores, alunos e pacientes,
a fazer aulão de Foucault, oficinas de “chuca”, de “empoderamento de buceta” e
de maconhagem. Estão desprezando a oportunidade de aprender de graça aquilo que
lhes vai custar bem caro quando se formarem e tiverem que pagar cursos de
especialização para recuperar o tempo perdido.
Não
tenho muita dúvida de que o sistema de universidades federais está em risco. A
população cada vez mais se revolta com o fato de que apenas uma minoria é
agraciada com um ensino gratuito de qualidade. Minoria essa que muitas vezes
não valoriza a chance e não corresponde às expectativas.
Não
precisa nem ser um economista neoliberal para perceber as contradições
internas, inerentes ao sistema. Um motorista de táxi, p. ex., que faz ponto no
campus de universidade federal pode facilmente somar dois e dois. O que
aconteceria se o cidadão adotasse a seguinte linha de raciocínio: O estado
inchado é totalitário, perdulário e ineficiente. O estado deve ser restringir a
dispensar os serviços essenciais à população. Qual é a lista mínima dos
sistemas essenciais: saúde, segurança, justiça, educação? Educação? Que serviço
essencial é esse que para recorrentemente e não faz falta? Por que o cidadão vai querer pagar por um serviço
que é caro e não faz falta?
Vamos
ver alguns números. Uma universidade federal com cerca de 40000 alunos tem um
orçamento anual de 1 bilhão e 500 milhões de Reais a 1 bilhão e 700 milhões de
Reais. Cada aluno custa de 3000 a 3500 Reais por mês ao pagador de impostos.
Cada mês parado em uma universidade federal com 40000 alunos representa um
desperdício de 125 a 140 milhões de Reais por mês. Será que o cidadão brasileiro
está disposto a bancar essa farra? Gente, tá na hora de parar de olhar só pro
próprio umbigo. Tem um mundo fora da universidade. Ao qual nós devemos
satisfação.
Referência
Alves-Mazzotti, A. J.; Gewandsznajder,
F. (1999). O método nas ciências naturais
e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira.
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