Se a realidade não se adequar ao
seu desejo, invada um prédio público. Nada vai acontecer. As autoridades da
Justiça, do Ministério Público e do Executivo não vão querer pagar de
preconceituosas e vão ser lenientes, quando não estimularem os comportamentos
autocráticos dos jovens que invadem faculdades e cerceiam os direitos e os
deveres alheios. Argumenta-se que o povo está protestando e que os protestos
não podem ser “crimininalizados”. O juízo deve ser suspenso.
Isso não é exclusividade
brasileira. A única coisa genuinamente nacional é a jaboticaba. Em Inglês o
pessoal tem usado e abusado do termo “nonjudgemental”. Ninguém quer parecer
“bigot” ou “judgemental” em relação ao comportamento alheio. Todo mundo quer ser
“inteligentinho”, como diz o Pondé.
Ando intrigado com esse termo
“nonjudgemental”. Como traduzí-lo para o Português? Acho que se refere à
recomendação politicamente correta de que o juízo (principalmente moral) deve
ser suspenso. Que devemos nos despir de preconceitos – a não ser o preconceito
de não ter preconceitos.
Mesmo sem saber direito como
traduzir esse vocábulo politicamente correto, todos sabemos direitinho o que
ele significa e sofremos na carne as suas conseqüências. Da Justiça, espera-se
que julgue, ou seja, que emita juízos sobre comportamentos. Se um determinado
comportamento foi certo ou errado. Se uma pessoa que se comportou de certa
maneira precisa de punição. Se a sociedade tem o direito de se precaver contra
reincidências de um indivíduo de risco estatístico etc. Os invasores de
faculdade e lançadores de molotovs podem nem saber que o termo existe, mas
compreendem exatamente e exploram o conceito subjacente. Não deixa de ser uma
forma de preconceito. Só que é o preconceito do bem, o anti-preconceito.
Aí entra o clássico caso no qual
a Polícia prende, o juiz solta e o criminoso reincide. De maneira mais violenta
e hedionda geralmente, uma vez que o facínora foi coonestado pela Justiça. O
que acontece nesses casos? Os juízes não querem parecer preconceituosos. Querem
garantir os direitos dos manos até o último, independentemente de como isso
possa afetar o bem-estar e a integridade física e moral dos não-manos.
A suspensão contemporânea do
juízo é o tema de um brilhante ensaio do Theodore Dalrymple. Além de
contextualizar a questão do ponto de vista social e criminal, ele também a
analisa a partir de uma perspectiva clinica e psicológica.
Idealmente, o profissional de
saúde deve suspender o juízo. Deve atender todos as pessoas necessitadas,
independentemente de simpatias. O profissional de saúde deve ser neutro e não
emitir juízos de valor (morais) sobre o comportamento do seu cliente. Mas o que
fazer quando os problemas do cliente são causados ou relacionados
principalmente aos seus comportamentos moralmente inadequados? O Dalrymple
enfrenta corajosamente essa questão e usa um argumento matador:
Há um tempo, eu li um artigo
muito interessante, que infelizmente não consigo mais localizar. O cara
defendia a tese de que, em um grande número, as doenças mentais são problemas
morais. Uma grande parcela de doentes mentais é egocêntrica, não conseguindo perceber
a perspectiva dos outros. Uma pessoa que está tão atrapalhada, que não consegue
entender que existe uma multiplicidade de pontos de vista. Que as pessoas têm
interesses muitas vezes conflitantes e que não são apenas os seus próprios
interesses que contam.
Não sei se isso é causa ou
conseqüência. Pode muito bem ser uma conseqüência de um sofrimento psicológico
atroz. Se for conseqüência, precisa ser diagnosticada e tratada. Se for causa,
deve ser erradicada.
Segundo o Dalrymple, essa agnosia
moral, essa dificuldade para perceber a própria parcela de responsabilidade nos
eventos da vida é uma das marcas da contemporaneidade. É um tipo de
comportamento narcisista que se manifesta, principalmente, sob a forma do
vitimismo.
O vitimismo é a atitude do indivíduo
que se compraz em, como o nome diz, ser objeto da opressão, estigmatização etc.
A existência humana é reduzida a relações de poder, nas quais os opressores
(machos e ocidentais) não se furtam de espezinhar uma série de categorias de
vítimas inocentes. Nessa visão do mundo, as pessoas perdem sua invidualidade,
sendo percebidas como representantes de categorias abstratas. As relações
interpessoais, a impossibilidade de realizar todos os desejos e a
responsabilidade pelas conseqüências dos próprios atos são forcluídas. A
vitimização passa a ser a fonte maior de significado na vida. O indivíduo se
define através dela.
Depois dessa volta toda,
chegamos, finalmente, ao caso das invasões. Os petralhas ficaram 14 anos
roubando e desperdiçando. Quebraram o País. Aí vem um novo Governo e propõe
medidas legislativas para tentar consertar a porcaria. Vejam bem, medidas
legislativas. A proposta pode ser boa ou ruim. Mas ela só vai ser implementada
se for aprovada, democraticamente, pelo Poder Legislativo.
Há um grupo de pessoas que se
opõe a essas medidas. O que eles fazem? Vão para as ruas aos milhões, protestar
pacificamente contra as medidas que consideram inadequadas? Nada disso,
resolvem invadir prédios públicos e tolher o direito alheio de estudar e trabalhar.
Ficam desperdiçando cerca de três a quatro mil reais por mês para cada
estudante que não pode freqüentar aulas, sem ter a mínima consideração também
pelos pagadores de impostos. Ou, pior ainda, saem pelas ruas lançando molotovs,
virando e incendiando carros, depredando prédios públicos, apedrejando,
flechando e esfaqueando policiais. Tudo porque o Mundo não está girando de
acordo com suas vontades.
Ai de quem ouse questionar a
moralidade e legalidade do comportamento desses jovens. Eles se refugiam imediatamente
na posição de vítima preferencial do preconceito. O crítico passa a ser alvo
automático de uma campanha de assassinato moral. Passa a ser tratado como
escória da Humanidade, como preconceituoso, reacionário, “fascista” ou coisa
pior.
Ainda bem que tem uns caras como
o Theodore Dalrymple que nos ajudam a analisar mais logica, serena e
corajosamente as questões subjacentes. Se nos intimidarmos, se formos covardes
e não nos pronunciarmos, se optarmos por não criminalizar o crime, estaremos
validando e estimulando o mesmo.
Estaremos subtraindo a esses
jovens uma oportunidade, talvez única, de questionarem suas crenças e seu
comportamento, de fazerem um exame de consciência, de procurarem compreender
quais são as conseqüências dos seus atos, quais seus deveres e qual sua
responsabilidade no que acontece. Isso tudo pode parecer coisa muito démodé.
Mas eu não importo. Estou chegando aos sessenta anos e prefiro a companhia e a
consolação do Dalrymple do que a aprovação desses vagabundos, mimadinhos,
vitiminhas, invasores de prédios públicos, cerceadores dos direitos alheios,
bem como dos partidos políticos e professores que apóiam seus comportamentos
moralmente reprováveis. Acho que estou em ótima companhia. Sózinho, mas bem
acompanhado. E não vou fechar o bico enquanto essas invasões perdurarem.
Enquanto eu precisar ficar em casa numa segunda-feira de manhã.
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