Uma vez eu atendi uma parente minha que estava
morrendo de câncer. Ela estava em estado terminal, sofrendo muito, e pouco
havia que pudesse ser feito a não ser consolá-la. Mas era difícil até mesmo lhe
oferecer algum consolo. Ela ficava chorando e dizia que não queria morrer. Eu
era jovem e pensava assim: “Tomara que eu tenha mais dignidade quando chegar a
minha hora”. Tomara mesmo!
Um sentimento parecido me invadia sempre que via alguns
colegas na bica da aposentadoria: frustrados, desencantados com a Universidade,
contando o tempo para se aposentar, sem ânimo para iniciar novos projetos ou
mesmo para tocar a rotina. Eu pensava assim: “Não vou deixar que isso aconteça
comigo. Vou ficar até o fim. Gosto tanto do que faço que vou até a compulsória
ou até morrer”.
Confesso que mudei de idéia. Também estou na bica
da aposentadoria e não pretendo mais ir até a compulsória. Assim que completar
o tempo de serviço, vou me aposentar. Para felicidade de muitos. Mas ainda me
resta energia e motivação para um último grande projeto. Um projeto que eu
possa realizar em até três anos e, então, encerrar a minha carreira federal.
Confesso também que, nos últimos tempos, ando um
pouco abalado A vida tem me ensinado a velha lição estóica, de não fazer a
própria felicidade depender dos outros. Vejam o que o Epícteto falava:
“Some
things are in our control and others not. Things in our control are opinion,
pursuit, desire, aversion, and, in a word, whatever are our own actions. Things
not in our control are body, property, reputation, command, and, in one word,
whatever are not our own actions.
“The
things in our control are by nature free, unrestrained, unhindered; but those
not in our control are weak, slavish, restrained, belonging to others. Remember,
then, that if you suppose that things which are slavish by nature are also
free, and that what belongs to others is your own, then you will be hindered.
You will lament, you will be disturbed, and you will find fault both with gods
and men. But if you suppose that only to be your own which is your own, and
what belongs to others such as it really is, then no one will ever compel you
or restrain you. Further, you will find fault with no one or accuse no one. You
will do nothing against your will. No one will hurt you, you will have no
enemies, and you not be harmed” (Epictetus, 135 AC, The Enchiridion, http://classics.mit.edu/Epictetus/epicench.html).
Epicteto propunha uma regra simples de conduta: Examinar
se uma coisa está sob o próprio controle ou não. Se algo foge ao próprio
controle, então não é bom nem mau. O que foge ao próprio controle é, na melhor
das hipóteses, irrelevante, ou, na pior, uma fonte de frustração. A essência do
bem são as coisas que estão sob o próprio controle.
Segundo o ensinamento estóico, o desejo de coisas
fora do próprio controle deve ser suprimido. É estupidez almejar coisas que
estão fora do próprio controle. Para não ter os próprios desejos frustrados,
basta desejar aquilo que é alcançável, o que está sob o próprio controle.
Valorizar e cultivar aquilo que está sob o próprio controle. Exercitar as
próprias inclinações e faculdades. Fazer a felicidade depender das próprias
ações e não das ações alheias.
Uma coisa que está permanentemente fora do meu
controle é o financiamento de pesquisa. Nunca é possível prever se um projeto
vai ser financiado ou não. À medida que se trabalha e se progride, a chance de
ter os projetos financiados aumenta. Mas certeza nunca existe, as verdas nunca
são suficientes e a frustração ronda a esquina. O remédio para isso é buscar
fontes alternativas de financiamento ou fazer projetos baratos.
Esse é um desafio que os pesquisadores brasileiros
enfrentam constantemente. Um dos maiores elogios que recebi na vida foi de um
colaborador alemão. Depois de uns cinco anos de trabalho em conjunto, o cara
ficou impressionado com a quantidade e a qualidade das nossas publicações e me
falou assim: “É impressionante o que vocês conseguem fazer com tão pouco!”.
Respondi pra ele que só fazemos aquilo que está ao nosso alcance e nos
contentamos com isso.
Eu vivia contente e não sabia que o destino estava
me aprontando. Entenda-se aqui por destino aquilo que está fora do meu
controle. Investi minha vida toda em uma carreira acadêmica. Abandonei uma
carreira clinica como neuropediatra, a qual parecia promissora em vários
sentidos, inclusive financeiramente. Coloquei
todos os meus ovinhos na cestinha do ensino e da pesquisa. Até agora a coisa
andou bem. Mas, alguns acontecimentos recentes sugerem que eu possa vir a quebrar
a cara.
O destino sempre bate à porta, sob a forma de
eventos que fogem ao nosso controle. O mais recente deles é a invasão das
universidades federais por uma horda de vagabundos e ignorantes, manipulados
por uma agenda política que eu rejeito. De uma hora para outra, me vi privado
do direito de trabalhar, ensinar, pesquisar. Vi-me privado da minha principal
fonte de realização pessoal. E os alunos e clientes privados dos meus
ensinamentos e serviços. E, sem querer ser arrogante, mas muito modestamente, o
País sendo privado daquilo que investiu na minha formação e trabalho.
Senti uma coisa semelhante quando meu pai morreu há
34 anos. De uma hora para outra, o destino me lançou no mundo adulto. E eu
percebi que teria que enfrentar muita sacanagem, inclusive de parentes, de
pessoas a quem estava afiliativamente vinculado. Foi um choque, mas superei.
Está sendo um choque também, perceber que a
Universidade foi privatizada por grupos mais interessados em promover sua
agenda política do que em promover o ensino, a pesquisa e a extensão. Está
sendo um choque. Mas todos vamos superá-lo. O segredo estóico é focar naquilo
que está sob nosso controle. Naquela pesquisa, p. ex., que não depende de
orçamento. E, nos tempos atuais, naquela atividade acadêmica que não depende nem
dp acesso à Faculdade. Requer auto-controle, mas é possível. Estou totalmente
focado na minha reestruturação cognitivo-emocional como estratégia de coping e
na finalização de uma fieira de papers.
Requer auto-controle. Mas é a própria vida que
impõe o auto-controle. Quando eu era pequeno, ficava impressionado ao ver como
os adultos lidavam com situações complexas. Ficava pensando se, quando adulto,
eu teria a mesma capacidade. Bom, agora sou mais do que adulto. Estou na bica
da velhice e estou tendo uma chance de provar para mim mesmo que tenho a
capacidade de superar a frustração, de me reestruturar, de continuar com a
minha obra, de não me deixar abater.
Esse texto é redigido a partir de uma perspectiva
assumidamente pessoal. Só compartilho esses sentimentos no FaceBook porque sei
que muitos colegas e alunos enfrentam dilemas parecidos e, talvez, essas
reflexões possam ser de alguma utilidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário