Pra não dizer que eu nunca falei da
“subjetividade”, hoje eu me lembrei dela. Muitas vezes as pessoas me perguntam
qual é a concepção do cognitivismo sobre a subjetividade. A minha resposta é a
seguinte. Na perspectiva cognitivista, a subjetividade é concebida como uma
fenômeno natural. Algo que existe e precisa ser explicado. A subjetividade é
então, nessa perspectiva, uma variável dependente. Um fenômeno importante, já que a maioria das
pessoas têm uma representação de si própria, da sua história e preferências, um senso de agência
etc. E já que essas representações exercem eficácia causal sobre o
comportamento.
Uma perspectiva inteiramente distinta sobre a
subjetividade é esposada pelas correntes “pós-“ de pensamento, ou seja,
pós-estruturalistas, pós-modernas, pós-marxistas etc. Existem tantos “pós-“
quantas são as subjetividades. Para essas correntes de pensamento, a
subjetividade é o fenômeno primordial, irredutível. Ou seja, como a
objetividade científica é, na melhor das hipóteses, uma ilusão ou, na pior das
hipóteses, um mecanismo de dominação de gênero, classe etc., como a realidade é
uma construção social, então tudo se torna relativo ao modo como o sujeito
constrói suas representações. Atribui-se, portanto, um status explicativo à
subjetividade. Nas diversas vertentes do pensamento “pós-isso” ou “pós-aquilo”
a subjetividade é tratada como uma variável independente. Afora a subjetividade,
o único fenômeno real admiitido são as relações de poder, a luta ideológica e a
revolução.
O que aconteceria se a noção de subjetividade como
categoria explicativa fosse aplicada às atuais invasões de escolas e
universidades brasileiras? De um lado teríamos, por assim dizer, a
subjetividade “não-invasiva” e de outro a “invasiva”. A subjetividade
não-invasiva é esposada por aqueles professores e estudantes cuja missão de
trabalhar e estudar em uma universidade federal preenche e realiza suas vidas.
Essas pessoas são auto-satisfeitas. Estão imbuídas da crença de que sua missão
é a coisa mais importante da vida. Acreditam que as universidades federais não
são um luxo caro, mas cumprem um importante papel no desenvolvimento social,
econômico e cientifício-tecnológico do País. Tais atores são gratos ao pagador
de impostos que subsidia sua existência e financia o seu trabalho ou estudo. O
exercício do seu ofício e estudo lhes basta, preenche suas vidas, e acreditam
piamente que têm uma relevância social e que estão contribuindo para maximizar
a utilidade social. Acreditam na nobreza e relevância das sua missão. E isso os
deixa felizes e contentes por, eventualmente, poder retribuir para o pagador de
impostos o voto de confiança que receberam.
Ou talvez pudesse se argumentar que a subjetividade
não-invasiva é néscia, alienada, individualista, egoísta? Justamente essa parece
ser a posição dos subjetivistas invasivos. Os invasivistas consideram que, por
mais importante que o trabalho acadêmico seja, há valores superiores. Valores
relacionados à transformação social, à realização de uma utopia. E estão
dispostos a pagar o preço que a luta pelos ideais cobra. Preço esse que pode
ser cobrado sob a forma de hostilizar colegas, manipular estudantes
mal-informados, descumprir as leis, impedir o direito de ir e vir e o direito
de trabalhar, enfrentar a polícia e expor jovens inexperientes a uma série de
riscos.
Os subjetivistas invasivos correspondem àquela
categoria de seres ungidos, identificada por Thomas Sowell (2007). São os donos
da verdade. São seres superiores, despidos de preconceitos. Indivíduos que
buscam ultrapassar os limites da individualidade no coletivismo. Só que o seu
comportamento e crenças é eivado de contradições e também de preconceitos, uma
vez que ninguém escapa dos preconceitos. Os preconceitos são um preceito da
economia cognitiva.
Os subjetivistas invasivos são livres de
preconceito apenas na medida em que se sentem ungidos. Ou seja, selecionaram
determinados valores que são cultuados acima de todos os outros. Seus valores
lhes parecem fundamentados em alguam forma de direito natural, logicamente
irrefutável e superior a todos os demais. Parece que não lhes passa pela cabeça
que os seus valores podem não ser apreciados por outras pessoas. Aos olhos de
outrem, os valores dos ungidos podem ser percebidos e, efetivamente, se
transformam em preconceitos. Algumas categorias, tais como gênero, etnia e raça
são ungidas em vacas sagradas, em vítimas preferenciais. Enquanto isso, a
variação em outras dimensões tais como a política ou a religião é inaceitável.
No caso da religião, p. ex., ser islâmico é atualmente uma categoria do bem,
que merece ser protegida de todas as formas para não ser vitmizada pelos
malvadões dos cristãos. O Cristianismo virou anátema. São “coletivistas” apenas
enquanto essa auto-percepção lhes serve para destacar-se dos “egoístas”
alienados. Nâo duvido que por trás do coletivismo possa se esconder um desejo
genuíno de justiça social. Mas, pragmaticamente, essa crença serve também para
diferenciar e elevar os coletivistas dos comuns dos mortais egoístas.
O contraste entre o subjetivismo não-invasivo e o
invasivo ilustra perfeitamente os dilemas e contradições do relativismo. Quer
seja moral ou epistemológico, o relativismo sempre acaba entrando em um beco
sem saída (Castañon, 2004). Se todos valores e todas representações da
realidade são relativos, prestando-se às manipulações de diversas ordens, então
o trabalho acadêmico não faz sentido. O trabalho acadêmico deve ser substituído
pela prática política, a famosa práxis. O papel da Universidade passa a ser
transformar a realidade. Antes mesmo de compreendê-la. Por outro lado, se todos
os valores e todas as representações da realidade são subjetivas e, portanto,
relativas, por que o subjetivismo invasivo deve ser superior ao subjetivismo
não-invasivo?
A característica primordial do confronto entre as
subjetividades não-invasiva e invasiva é que ele gera mais calor do que luz. O
contraste entre as subjetividades não-invasiva e invasiva sugere que as mesmas
sejam dimensões irreconciliáveis do ser, ou da existência, sei eu lá. Como a
diferenciação, por definição, é subjetiva, então é impérvia à argumentação
lógica. Duas questões se colocam então: 1) O que explica essas diferenças? e 2)
O que fazer?
Na perspectiva da ciência cognitiva, a
subjetividade é tratada como variável dependente, como fenômeno a ser
explicado. A melhor explicação que eu conheço foi proposta por Jonathan Haidt
(2012), um dos psicólogos sociais contemporâneos mais destacados e originais.
Vou só dar uma palhinha do seu trabalho aqui. Não posso entrar em detalhes.
Posso apenas recomendar fortemente a leitura do seu livro (Haidt, 2012) ou
aguardar um artigo que vai ser publicado brevemente sobre os fundamentos
moral-psicológicos e neuroevolutivos do partidarismo político (Haase &
Starling-Alves, no prelo).
A idéia básica do Haidt é de que as dissensões
político-partidárias e religiosas emergem de diferentes concepções da
moralidade. O repertório de motivos morais humanos se restringe a uma meia
dúzia de parâmetros, cujos slots são preenchidos de maneiras distintas por
diferentes culturas ou por diferentes indivíduas em uma mesma cultura. O
repertório de motivos morais se circunscreve a alguns temas que são
extremamente relevantes para a vida social. Cada sociedade orgânica se
estrutura atribuindo valores a esses slots. Haidt distingue os motivos morais
como dicotomias entre 1) cuidado (care) vs. malefício (harm), 2) justiça social
como igualdade e direitos vs. proporcionalidade, 3) liberdade (como ausência de
coação) vs. opressão, 4) lealdade vs. traição, 5) autoridade vs. subversão e 6)
santidade (pureza) vs. contaminação (degradação ou conspurcação).
Através de uma série de estudos empíricos
(resumidos por Haidt, 2012) foi possível descobrir que as dissenssões políticas
se associam aos pesos distintos atribuídos aos diversos motivos morais. Os
esquerdistas (“liberals” nos EUA) priorizam os valores de cuidado, liberdade
como direito e justiça social como igualdade de desfechos. Os conservadores,
por outro lado, aderem a uma paleta mais ampla de valores morais. O cuidado,
justiça social e liberdade também são importantes para os conservadores. Mas os
conservadores têm percepções distintas sobre esses dois últimos valores.
Justiça social, na perspectiva do conservadorismo, é igualdade de oportunidade
e defesa contra as pessoas que querem levar vantagem sem contribuir para o
esforço coletivo. Liberdade, na perspectiva conservadora, é ausência de coerção
e não uma série infindável de direitos humanos. Mas a paleta moral conservadora
é mais ampla, incluindo ainda a lealdade ao grupo e instituições, o respeito à
autoridade e a reverência à pureza ou
santidade.
Na perspectiva teórica intuicionista adotada por
Haidt e seguindo Hume, a razão é a serva das paixões. A origem dos motivos
morais valorizados deve ser buscada em intuições fortemente influenciadas pelos
afetos. Há sólidas evidências empíricas de que o juízo moral ocorre post hoc,
como uma tentativa de racionalização, de justificação das intuições morais.
Essa é a razão péla qual as discussões políticas e religiosas são tão impérvias
à argumentação racional. Há afetos poderosos que eliciam as nossas intuições
morais. E cada individuo vai desenvolver um conjunto de valores influenciado
pela sua personalidade (fortemente influenciada pela genética) e pela
experiência de vida (cultura). Como, p. ex., inclinar-se a favor da justiça
social como igualdade de desfechos ou valorizar a liberdade como ausência de
coerção.
Haidt conta no livro que iniciou sua carreira como
um “liberal” (esquerdista norte-americano) mas que, à medida que aprendia mais
sobre os fundamentos morais do partidarismo político convenceu-se de que a
paleta cosnservadora é mais diversificada e sólida, conducente a uma sociedade
orgânica na concepção de Durkheim e não
a uma sociedade racional-utilitária, tal como concebida por Marx, Mill e
outros. Quem sabe se, essa trajetória política do Haidt, não faz parte do seu
processo de amadurecimento pessoal como observado em tantas outras pessoas que
evoluíram do esquerdismo da juventude para o conservadorismo da maturidade?
O fato é que essas diferenças existem. Os
subjetivistas não-invasivistas e os invasivistas estão ai. E a convivência é
bastante difícil. O que fazer? Os invasivos são maioria na Academia mas minoria
na Sociedade. Enquanto isso, os não-invasivos são minoria na Academia mas
amplamente majoritários na opinião pública. Isso significa que os invasivistas
não têm direito a um lugar ao sol? Longe disso. As diferenças de opinião entre
um grupo e outro têm origem na subjetividade e, como são impérvias à
racionalidade, não há outra solução do que aceita-las. Por mais contrariados
que ambos os lados eventualmente se sintam. A democracia burguesa, capitalista
se caracteriza, justamente, pelo cultivo da liberdade de opinão. Incluindo a
tolerância das opiniões que lhes são críticas, adversárias e, até mesmo,
subversivas. Existiu alguma vez, em alguma época ou lugar, um regime
“coletivista” que tenha cultivado a tolerência e a liberdade de opinião?
A questão é permanecer nos limites da lei. Nos
limites do contrato social fictício, sem coagir nem cercear os direitos alheios. Tais como o
direito de ir e vir, o direito de trabalhar e o direito de estudar. A subjetiva
invasiva é aceitável, portanto, na medida em que não invade prédios públicos ou
os direitos alheios. Que fiquem à vontade para invadir o que quiserem. Mas que
seja dentro lei. Fora da lei é subversão, para louvar-me em um valor
conservador.
Referências
Castañon, G. A. (2004). Pós-modernismo e política
científica na psicologia contemporânea:
uma revisão crítica. Temas em Psicologia da SBP,
12, 155-167.
Haidt, J. (2012). The righteous minds. Why good
people are divided by politics and religion. New York: Pantheon.
Haase,
V. G. & Starling-Alves, I. (no prelo). Towards the moral-psychological and
neuroevolutionary basis of political partisanship. Dementia &
Neuropsychologia.
Sowell,
T. (2007). A conflict of visions. Ideological origins of political struggles.
New York: Basic Books.
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