domingo, 4 de dezembro de 2016

CRISE DA MEIA IDADE



Uma vez eu atendi uma parente minha que estava morrendo de câncer. Ela estava em estado terminal, sofrendo muito, e pouco havia que pudesse ser feito a não ser consolá-la. Mas era difícil até mesmo lhe oferecer algum consolo. Ela ficava chorando e dizia que não queria morrer. Eu era jovem e pensava assim: “Tomara que eu tenha mais dignidade quando chegar a minha hora”. Tomara mesmo!

Um sentimento parecido me invadia sempre que via alguns colegas na bica da aposentadoria: frustrados, desencantados com a Universidade, contando o tempo para se aposentar, sem ânimo para iniciar novos projetos ou mesmo para tocar a rotina. Eu pensava assim: “Não vou deixar que isso aconteça comigo. Vou ficar até o fim. Gosto tanto do que faço que vou até a compulsória ou até morrer”.

Confesso que mudei de idéia. Também estou na bica da aposentadoria e não pretendo mais ir até a compulsória. Assim que completar o tempo de serviço, vou me aposentar. Para felicidade de muitos. Mas ainda me resta energia e motivação para um último grande projeto. Um projeto que eu possa realizar em até três anos e, então, encerrar a minha carreira federal.

Confesso também que, nos últimos tempos, ando um pouco abalado A vida tem me ensinado a velha lição estóica, de não fazer a própria felicidade depender dos outros. Vejam o que o Epícteto  falava:

“Some things are in our control and others not. Things in our control are opinion, pursuit, desire, aversion, and, in a word, whatever are our own actions. Things not in our control are body, property, reputation, command, and, in one word, whatever are not our own actions.

“The things in our control are by nature free, unrestrained, unhindered; but those not in our control are weak, slavish, restrained, belonging to others. Remember, then, that if you suppose that things which are slavish by nature are also free, and that what belongs to others is your own, then you will be hindered. You will lament, you will be disturbed, and you will find fault both with gods and men. But if you suppose that only to be your own which is your own, and what belongs to others such as it really is, then no one will ever compel you or restrain you. Further, you will find fault with no one or accuse no one. You will do nothing against your will. No one will hurt you, you will have no enemies, and you not be harmed” (Epictetus, 135 AC, The Enchiridion, http://classics.mit.edu/Epictetus/epicench.html).

Epicteto propunha uma regra simples de conduta: Examinar se uma coisa está sob o próprio controle ou não. Se algo foge ao próprio controle, então não é bom nem mau. O que foge ao próprio controle é, na melhor das hipóteses, irrelevante, ou, na pior, uma fonte de frustração. A essência do bem são as coisas que estão sob o próprio controle.

Segundo o ensinamento estóico, o desejo de coisas fora do próprio controle deve ser suprimido. É estupidez almejar coisas que estão fora do próprio controle. Para não ter os próprios desejos frustrados, basta desejar aquilo que é alcançável, o que está sob o próprio controle. Valorizar e cultivar aquilo que está sob o próprio controle. Exercitar as próprias inclinações e faculdades. Fazer a felicidade depender das próprias ações e não das ações alheias.

Uma coisa que está permanentemente fora do meu controle é o financiamento de pesquisa. Nunca é possível prever se um projeto vai ser financiado ou não. À medida que se trabalha e se progride, a chance de ter os projetos financiados aumenta. Mas certeza nunca existe, as verdas nunca são suficientes e a frustração ronda a esquina. O remédio para isso é buscar fontes alternativas de financiamento ou fazer projetos baratos.

Esse é um desafio que os pesquisadores brasileiros enfrentam constantemente. Um dos maiores elogios que recebi na vida foi de um colaborador alemão. Depois de uns cinco anos de trabalho em conjunto, o cara ficou impressionado com a quantidade e a qualidade das nossas publicações e me falou assim: “É impressionante o que vocês conseguem fazer com tão pouco!”. Respondi pra ele que só fazemos aquilo que está ao nosso alcance e nos contentamos com isso.

Eu vivia contente e não sabia que o destino estava me aprontando. Entenda-se aqui por destino aquilo que está fora do meu controle. Investi minha vida toda em uma carreira acadêmica. Abandonei uma carreira clinica como neuropediatra, a qual parecia promissora em vários sentidos,  inclusive financeiramente. Coloquei todos os meus ovinhos na cestinha do ensino e da pesquisa. Até agora a coisa andou bem. Mas, alguns acontecimentos recentes sugerem que eu possa vir a quebrar a cara.

O destino sempre bate à porta, sob a forma de eventos que fogem ao nosso controle. O mais recente deles é a invasão das universidades federais por uma horda de vagabundos e ignorantes, manipulados por uma agenda política que eu rejeito. De uma hora para outra, me vi privado do direito de trabalhar, ensinar, pesquisar. Vi-me privado da minha principal fonte de realização pessoal. E os alunos e clientes privados dos meus ensinamentos e serviços. E, sem querer ser arrogante, mas muito modestamente, o País sendo privado daquilo que investiu na minha formação e trabalho.

Senti uma coisa semelhante quando meu pai morreu há 34 anos. De uma hora para outra, o destino me lançou no mundo adulto. E eu percebi que teria que enfrentar muita sacanagem, inclusive de parentes, de pessoas a quem estava afiliativamente vinculado. Foi um choque, mas superei.

Está sendo um choque também, perceber que a Universidade foi privatizada por grupos mais interessados em promover sua agenda política do que em promover o ensino, a pesquisa e a extensão. Está sendo um choque. Mas todos vamos superá-lo. O segredo estóico é focar naquilo que está sob nosso controle. Naquela pesquisa, p. ex., que não depende de orçamento. E, nos tempos atuais, naquela atividade acadêmica que não depende nem dp acesso à Faculdade. Requer auto-controle, mas é possível. Estou totalmente focado na minha reestruturação cognitivo-emocional como estratégia de coping e na finalização de uma fieira de papers.

Requer auto-controle. Mas é a própria vida que impõe o auto-controle. Quando eu era pequeno, ficava impressionado ao ver como os adultos lidavam com situações complexas. Ficava pensando se, quando adulto, eu teria a mesma capacidade. Bom, agora sou mais do que adulto. Estou na bica da velhice e estou tendo uma chance de provar para mim mesmo que tenho a capacidade de superar a frustração, de me reestruturar, de continuar com a minha obra, de não me deixar abater.

Esse texto é redigido a partir de uma perspectiva assumidamente pessoal. Só compartilho esses sentimentos no FaceBook porque sei que muitos colegas e alunos enfrentam dilemas parecidos e, talvez, essas reflexões possam ser de alguma utilidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário