domingo, 4 de dezembro de 2016

SUBJETIVIDADE INVASIVA



Pra não dizer que eu nunca falei da “subjetividade”, hoje eu me lembrei dela. Muitas vezes as pessoas me perguntam qual é a concepção do cognitivismo sobre a subjetividade. A minha resposta é a seguinte. Na perspectiva cognitivista, a subjetividade é concebida como uma fenômeno natural. Algo que existe e precisa ser explicado. A subjetividade é então, nessa perspectiva, uma variável dependente.  Um fenômeno importante, já que a maioria das pessoas têm uma representação de si própria, da sua  história e preferências, um senso de agência etc. E já que essas representações exercem eficácia causal sobre o comportamento.

Uma perspectiva inteiramente distinta sobre a subjetividade é esposada pelas correntes “pós-“ de pensamento, ou seja, pós-estruturalistas, pós-modernas, pós-marxistas etc. Existem tantos “pós-“ quantas são as subjetividades. Para essas correntes de pensamento, a subjetividade é o fenômeno primordial, irredutível. Ou seja, como a objetividade científica é, na melhor das hipóteses, uma ilusão ou, na pior das hipóteses, um mecanismo de dominação de gênero, classe etc., como a realidade é uma construção social, então tudo se torna relativo ao modo como o sujeito constrói suas representações. Atribui-se, portanto, um status explicativo à subjetividade. Nas diversas vertentes do pensamento “pós-isso” ou “pós-aquilo” a subjetividade é tratada como uma variável independente. Afora a subjetividade, o único fenômeno real admiitido são as relações de poder, a luta ideológica e a revolução.

O que aconteceria se a noção de subjetividade como categoria explicativa fosse aplicada às atuais invasões de escolas e universidades brasileiras? De um lado teríamos, por assim dizer, a subjetividade “não-invasiva” e de outro a “invasiva”. A subjetividade não-invasiva é esposada por aqueles professores e estudantes cuja missão de trabalhar e estudar em uma universidade federal preenche e realiza suas vidas. Essas pessoas são auto-satisfeitas. Estão imbuídas da crença de que sua missão é a coisa mais importante da vida. Acreditam que as universidades federais não são um luxo caro, mas cumprem um importante papel no desenvolvimento social, econômico e cientifício-tecnológico do País. Tais atores são gratos ao pagador de impostos que subsidia sua existência e financia o seu trabalho ou estudo. O exercício do seu ofício e estudo lhes basta, preenche suas vidas, e acreditam piamente que têm uma relevância social e que estão contribuindo para maximizar a utilidade social. Acreditam na nobreza e relevância das sua missão. E isso os deixa felizes e contentes por, eventualmente, poder retribuir para o pagador de impostos o voto de confiança que receberam.

Ou talvez pudesse se argumentar que a subjetividade não-invasiva é néscia, alienada, individualista, egoísta? Justamente essa parece ser a posição dos subjetivistas invasivos. Os invasivistas consideram que, por mais importante que o trabalho acadêmico seja, há valores superiores. Valores relacionados à transformação social, à realização de uma utopia. E estão dispostos a pagar o preço que a luta pelos ideais cobra. Preço esse que pode ser cobrado sob a forma de hostilizar colegas, manipular estudantes mal-informados, descumprir as leis, impedir o direito de ir e vir e o direito de trabalhar, enfrentar a polícia e expor jovens inexperientes a uma série de riscos.

Os subjetivistas invasivos correspondem àquela categoria de seres ungidos, identificada por Thomas Sowell (2007). São os donos da verdade. São seres superiores, despidos de preconceitos. Indivíduos que buscam ultrapassar os limites da individualidade no coletivismo. Só que o seu comportamento e crenças é eivado de contradições e também de preconceitos, uma vez que ninguém escapa dos preconceitos. Os preconceitos são um preceito da economia cognitiva.

Os subjetivistas invasivos são livres de preconceito apenas na medida em que se sentem ungidos. Ou seja, selecionaram determinados valores que são cultuados acima de todos os outros. Seus valores lhes parecem fundamentados em alguam forma de direito natural, logicamente irrefutável e superior a todos os demais. Parece que não lhes passa pela cabeça que os seus valores podem não ser apreciados por outras pessoas. Aos olhos de outrem, os valores dos ungidos podem ser percebidos e, efetivamente, se transformam em preconceitos. Algumas categorias, tais como gênero, etnia e raça são ungidas em vacas sagradas, em vítimas preferenciais. Enquanto isso, a variação em outras dimensões tais como a política ou a religião é inaceitável. No caso da religião, p. ex., ser islâmico é atualmente uma categoria do bem, que merece ser protegida de todas as formas para não ser vitmizada pelos malvadões dos cristãos. O Cristianismo virou anátema. São “coletivistas” apenas enquanto essa auto-percepção lhes serve para destacar-se dos “egoístas” alienados. Nâo duvido que por trás do coletivismo possa se esconder um desejo genuíno de justiça social. Mas, pragmaticamente, essa crença serve também para diferenciar e elevar os coletivistas dos comuns dos mortais egoístas.

O contraste entre o subjetivismo não-invasivo e o invasivo ilustra perfeitamente os dilemas e contradições do relativismo. Quer seja moral ou epistemológico, o relativismo sempre acaba entrando em um beco sem saída (Castañon, 2004). Se todos valores e todas representações da realidade são relativos, prestando-se às manipulações de diversas ordens, então o trabalho acadêmico não faz sentido. O trabalho acadêmico deve ser substituído pela prática política, a famosa práxis. O papel da Universidade passa a ser transformar a realidade. Antes mesmo de compreendê-la. Por outro lado, se todos os valores e todas as representações da realidade são subjetivas e, portanto, relativas, por que o subjetivismo invasivo deve ser superior ao subjetivismo não-invasivo?

A característica primordial do confronto entre as subjetividades não-invasiva e invasiva é que ele gera mais calor do que luz. O contraste entre as subjetividades não-invasiva e invasiva sugere que as mesmas sejam dimensões irreconciliáveis do ser, ou da existência, sei eu lá. Como a diferenciação, por definição, é subjetiva, então é impérvia à argumentação lógica. Duas questões se colocam então: 1) O que explica essas diferenças? e 2) O que fazer?

Na perspectiva da ciência cognitiva, a subjetividade é tratada como variável dependente, como fenômeno a ser explicado. A melhor explicação que eu conheço foi proposta por Jonathan Haidt (2012), um dos psicólogos sociais contemporâneos mais destacados e originais. Vou só dar uma palhinha do seu trabalho aqui. Não posso entrar em detalhes. Posso apenas recomendar fortemente a leitura do seu livro (Haidt, 2012) ou aguardar um artigo que vai ser publicado brevemente sobre os fundamentos moral-psicológicos e neuroevolutivos do partidarismo político (Haase & Starling-Alves, no prelo).

A idéia básica do Haidt é de que as dissensões político-partidárias e religiosas emergem de diferentes concepções da moralidade. O repertório de motivos morais humanos se restringe a uma meia dúzia de parâmetros, cujos slots são preenchidos de maneiras distintas por diferentes culturas ou por diferentes indivíduas em uma mesma cultura. O repertório de motivos morais se circunscreve a alguns temas que são extremamente relevantes para a vida social. Cada sociedade orgânica se estrutura atribuindo valores a esses slots. Haidt distingue os motivos morais como dicotomias entre 1) cuidado (care) vs. malefício (harm), 2) justiça social como igualdade e direitos vs. proporcionalidade, 3) liberdade (como ausência de coação) vs. opressão, 4) lealdade vs. traição, 5) autoridade vs. subversão e 6) santidade (pureza) vs. contaminação (degradação ou conspurcação).

Através de uma série de estudos empíricos (resumidos por Haidt, 2012) foi possível descobrir que as dissenssões políticas se associam aos pesos distintos atribuídos aos diversos motivos morais. Os esquerdistas (“liberals” nos EUA) priorizam os valores de cuidado, liberdade como direito e justiça social como igualdade de desfechos. Os conservadores, por outro lado, aderem a uma paleta mais ampla de valores morais. O cuidado, justiça social e liberdade também são importantes para os conservadores. Mas os conservadores têm percepções distintas sobre esses dois últimos valores. Justiça social, na perspectiva do conservadorismo, é igualdade de oportunidade e defesa contra as pessoas que querem levar vantagem sem contribuir para o esforço coletivo. Liberdade, na perspectiva conservadora, é ausência de coerção e não uma série infindável de direitos humanos. Mas a paleta moral conservadora é mais ampla, incluindo ainda a lealdade ao grupo e instituições, o respeito à autoridade e a  reverência à pureza ou santidade.

Na perspectiva teórica intuicionista adotada por Haidt e seguindo Hume, a razão é a serva das paixões. A origem dos motivos morais valorizados deve ser buscada em intuições fortemente influenciadas pelos afetos. Há sólidas evidências empíricas de que o juízo moral ocorre post hoc, como uma tentativa de racionalização, de justificação das intuições morais. Essa é a razão péla qual as discussões políticas e religiosas são tão impérvias à argumentação racional. Há afetos poderosos que eliciam as nossas intuições morais. E cada individuo vai desenvolver um conjunto de valores influenciado pela sua personalidade (fortemente influenciada pela genética) e pela experiência de vida (cultura). Como, p. ex., inclinar-se a favor da justiça social como igualdade de desfechos ou valorizar a liberdade como ausência de coerção.

Haidt conta no livro que iniciou sua carreira como um “liberal” (esquerdista norte-americano) mas que, à medida que aprendia mais sobre os fundamentos morais do partidarismo político convenceu-se de que a paleta cosnservadora é mais diversificada e sólida, conducente a uma sociedade orgânica na concepção de Durkheim e não  a uma sociedade racional-utilitária, tal como concebida por Marx, Mill e outros. Quem sabe se, essa trajetória política do Haidt, não faz parte do seu processo de amadurecimento pessoal como observado em tantas outras pessoas que evoluíram do esquerdismo da juventude para o conservadorismo da maturidade?

O fato é que essas diferenças existem. Os subjetivistas não-invasivistas e os invasivistas estão ai. E a convivência é bastante difícil. O que fazer? Os invasivos são maioria na Academia mas minoria na Sociedade. Enquanto isso, os não-invasivos são minoria na Academia mas amplamente majoritários na opinião pública. Isso significa que os invasivistas não têm direito a um lugar ao sol? Longe disso. As diferenças de opinião entre um grupo e outro têm origem na subjetividade e, como são impérvias à racionalidade, não há outra solução do que aceita-las. Por mais contrariados que ambos os lados eventualmente se sintam. A democracia burguesa, capitalista se caracteriza, justamente, pelo cultivo da liberdade de opinão. Incluindo a tolerância das opiniões que lhes são críticas, adversárias e, até mesmo, subversivas. Existiu alguma vez, em alguma época ou lugar, um regime “coletivista” que tenha cultivado a tolerência e a liberdade de opinião?

A questão é permanecer nos limites da lei. Nos limites do contrato social fictício, sem coagir nem  cercear os direitos alheios. Tais como o direito de ir e vir, o direito de trabalhar e o direito de estudar. A subjetiva invasiva é aceitável, portanto, na medida em que não invade prédios públicos ou os direitos alheios. Que fiquem à vontade para invadir o que quiserem. Mas que seja dentro lei. Fora da lei é subversão, para louvar-me em um valor conservador.


Referências

Castañon, G. A. (2004). Pós-modernismo e política científica na psicologia contemporânea:
uma revisão crítica. Temas em Psicologia da SBP, 12, 155-167.

Haidt, J. (2012). The righteous minds. Why good people are divided by politics and religion. New York: Pantheon.

Haase, V. G. & Starling-Alves, I. (no prelo). Towards the moral-psychological and neuroevolutionary basis of political partisanship. Dementia & Neuropsychologia.

Sowell, T. (2007). A conflict of visions. Ideological origins of political struggles. New York: Basic Books.

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