domingo, 4 de dezembro de 2016

NARCISISMO INTELECTUAL: O TRISTE FIM DAS FEDERAIS



O sistema de universidades federais no Brasil está correndo perigo. E as ameaças são tanto internas quanto externas. Mais internas do que externas. Vou começar examinando as ameaças internas.
Durante muitos anos as universidades federais serviram com um sistema meritocrático de ascensão social, junto com as Forças Armadas e a Igreja. O sistema de universidades federais formava uma elite, preparada para assumir posições de liderança na sociedade. Essa lógica se rompeu na medida em que o sistema universitário federal cresceu de modo exponencial e desordenado. O numéro de vagas foi ampliado e os critérios de ingresso tanto de alunos quanto de professores foram sendo gradualmente afrouxados. Novas universidades foram criadas em números grandiloqüentes. Na maioria das vezes sem garantia de orçamento, sem estruturua física, sem recursos materiais e humanos. Sem as mínimas condições de atuar na área de pesquisa.
A expansão do sistema federal de ensino superior não é ruim. Ao contrário, poderia ser muito benéfica se fosse acompanhada de uma expansão condizente do ensino médio técnico e de uma redefinição dos papéias institucionais. As universidades federais brasileiras sempre se orientaram pelo modelo humboldtiano de unidade entre ensino, pesquisa e extensão. Além do do trinômio ensino-pesquisa-extensão, a universidade humboldtiana se fundamenta nos pilares da Bildung (formação no mais amplo sentido), universalidade (do conhecimento), autonomia (liberdade para realizar pesquisa básica, não necessariamente aplicável), liberdade de cátedra e meritocracia.
Do modo como foi conduzida a expansão do sistema de universidades federais colocou em cheque o caráter humboldtiano de pelo menos uma parte do sistema. Com raras e honrosas exceções, as novas “universidades” não conseguem se dedicar à pesquisa. E em muitos casos nem ao ensino. A “fartura” é demais. “Farta” de tudo, Sobra apenas a irresponsabilidade dos seus idealizadores e a garra e desespero dos seus implementaddores. Nesse sentido, elas ainda não são universidades verdadeiras. Se é que um dia chegarão a sê-lo. A expansão do sistema federal de educação superior faz com que o mesmo passe a funcionar como universidade de massa ou instituições de ensino profissionalizante superior.
Não tem nada de errado com o conceito de universidade de massa. Elas são uma tendência no Mundo todo. À medida que avançamos na Era Cognitiva e as exigências educacionais se tornam mais complexas, surge uma demanda crescente por universalização do ensino superior.  Mas será que essa demanda por maior diferenciação educational e profissional não poderia ser suprida pelo ensino médio profissionalizante, o qual tem sido tradicionalmente desprezado no nosso País? Ou será que a construção de um sistema federal de universidades de massa precisa ocorrer às custas do sistema humboldtiano? Não teria sido melhor criar um sistema diferenciado, expandindo a rede e preservando aquilo que já havia sido alcançado?
O sistema de universidades federais do Brasil ainda é uma das melhores coisas que o País já tinha criou. Uma reserva de capital mental e social. Além dessa função de ascensão social e de formação de uma elite, as federais sempre atuaram na promoção da diversidade e debate intelectual, resistiram bravamente ao cerceamento da opinião durante os anos de Regime Militar e, nas últimas décadas, vêm alcançando resultados notáveis na pesquisa. Aumentando notadamente a contribuição do Brasil para o acúmulo de conhecimento. Os progressos foram enormes. O número de publicações internacionais de autores brasileiros e a cooperação com pesquisadores de outros países aumentou de forma incrível. O banco de dados Periódicos CAPES permite que os docentes e estudantes brasileiros tenham acesso imediato a praticamente toda a literatura científica internacional. O nosso sistema de pós-graduação se expandiu e consolidou. A iniciação científica é uma das atividades mais notáveis que se desenvolve nas universidades brasileiras, sendo importante tanto para a formação de pesquisadores quanto para a formação profissional. Tudo isso vinha ocorrendo em um clima de liberdade acadêmica, de gestão colegiada. Tradicionalmente o ambiente era arejado, diversificado, estimulante.
Todas as características mencionadas faziam com que a carreira universitária atraísse alguns dos jovens mais talentosos nas diversas áreas do conhecimento. Os salários são consideravelmente mais baixos do que na iniciativa privada. Mas a estabilidade no emprego, a aposentadoria integral, o ambiente arejado, a gestão colegiada, a possiblidade de trabalhar com pesquisa e de constantemente se rejuvenescer na interação com jovens talentosos constituam um diferencial na carreira.
A partir de uma perspectiva nacionalista-desenvolvimentista, as universidades federais brasileiras justificavam também sua existência por razões estratégicas. As instituições privadas de ensino no Brasil nunca favoreceram a pesquisa. E, com raríssimas exceções, não há nada indicando que a pesquisa venha ser cultivada a médio prazo nas instituições privadas. O sistema federal cumpre, portanto, esse importante papel.
O exemplo de países como a China, que estão investindo maciçamente na educação superior e pesquisa é muito ilustrativo. Deveria ser seguido, com a ressalva de que, como não há liberdade de pensamento na China, o modelo deles fatalmente vai encontrar seus limites. O desenvolvimento científico-tecnológico do nosso País exigiria a consolidação e aprimoramento do sistema humboldtiano e não o seu desmonte como está acontecendo. Pelo andar da carruagem estamos apenas assegurando que a nossa dependência científica e tecnológica perdure ou, inclusive, aumente. 
Mas os docentes e pesquisadores brasileiros têm o couro duro e sempre souberam lidar  com a falta de financiamento e reconhecimento por parte das autoridades. Tanto que progredimos o quanto progredimos, apesar da escassez de recursos. Fomos nos especializando em tirar leite de pedra. E essa nossa capacidade é reconhecida pelos nosso colaboradores internacionais. Muitas vezes ouvimos colegas de outros países comentando: “É incrível o tanto que vocês conseguem fazer com tão pouco!”. É claro que não temos qualquer vocação franciscana. Mas nos orgulhamos de aprender a superar as adversidades e a escassez de recursos. Talvez isso explique o enorme prestígio social de que gozam as universidades federais no Brasil.
Eu me considero um dos tantos jovens mais ou menos promissores que resolveu apostar no sistema de universidades federais. Há mais de trinta anos desprezei uma carreira que parecia promissora como neuropediatra e resolvi apostar numa cadeira acadêmica como neuropsicólogo. Nunca tive ilusão de que seria um grande pesquisador. Minha formação matemática é deficiente para isso e eu sabia que enfrentaria a falta de recursos. Dessa forma, sempre encarei a minha missão como sendo mais relacionado ao ensino do que à pesquisa. Sempre pensei que poderia dar uma enorme contribuição na formação de recursos humanos em neuropsicologia. E acho que, modéstia à parte, tenho sido muito bem sucedido. Se conseguisse alguma coisa com a pesquisa, viria de inhapa. Como, de falto, alguma coisa acabou vindo.
Essas ameaças internas têm sido agravadas nos últimos anos pela privatização da universidade por grupos políticos de esquerda, mais interessados em promover sua agenda política do que o ensino, a pesquisa e a extensão. Não apenas no Brasil, mas no Mundo inteiro, assistimos a uma ascensão das formas de pensamento politicamente correto e o surgimento de uma verdadeira hegemonia totalitária. A diversidade de pensamento só é admitidade do lado esquerdo de variação do espectro. A diversidade política e religiosa é rejeitada através da instauração do crime de opinião. Se um professor ou estudante é contra o feminismo radical, ele é “machista”, se ele é contra a ideologia de gênero é “homofóbico”, se ele é contra o sistema de cotas, é “racista”, se é contra o distributivismo populista, é “fascista” etc. O clima nas universidades é tudo menos propício ao debate. Quem diverge da ortodoxia politicamente correta sente-se asfixiado. É batatolina, quando os ungidos do pensamento politicamente correto perdem o argumento, eles apelam invevitavelmente à reductio ad Hitlerum ou lei de Godwin. Só que quem joga a carta da acusação de nazismo, já perdeu a discussão. Isso só serve para gerar perseguição de grupos raivosos contra indivíduos heterodoxos. Assim, o feitiço acaba se voltando contra o próprio feiticeiro: Eles sempre cometem aquilo de que acusam os outros.
Se a coisa continuar assim, acho que a universidade humboldtiana vai morrer estrangulada pelo pensamento politicamente correto. Não só no Brasil, no Mundo todo. Esse pessoal de esquerda não é nada original. Eles ficam copiando os norte-americanos até nisso. A ideologia politicamente correta é a principal ameaça à universidade. E ela vem de dentro e não de fora. A supremacia do pensamento politicamente deriva, em grande parte, da própria liberdade acadêmica oferecida pelas universidades humboldtianas ocidentais. O preço está sendo cobrado. O ovo da serpente está sendo chocado e pode acabar com as federais a partir de dentro. O sistema sempre foi tão tolerante à diversidade de opinião, que acabou monopolizado por grupos de ativistas, mais interessados em transformar a realidade do que em compreendê-la. 
A situação é mais grave na área das ciências humanas. Segundo Alves-Mazzotti e Gewandsznajder (1999), a reflexão, análise conceitual e hermenêutica são substituídas pelo ativismo  puro e simples. Referenciais teórico-metodológicos são selecionados com base em modismos, principalmente importados da França, e não a partir de uma reflexão crítica sobre a natureza dos fenômenos a serem investigados. A testagem de hipóteses é rejeitada como característica fundamental do método científico. São realizados estudos descritivos e qualitativos, sem qualquer tipo de tentativa de matematização em tópicos cujo conhecimento já avançou a ponto de permitir o teste de hipóteses. Muitos temas refletem idiossincrasias pessoais ou contextuais específicas e carecem de relevância teórica ou social. A adoção de referenciais teórico-metodológicos fracos forclui a publicação em veículos científicos de impacto. A divulgação restrita dos resultados em periódicos de pouco impacto, aliada à utilização de uma linguagem hermética restringe a divulgação dos resultados a um círculo de iniciados. Os iniciados que comungam em uma determinada igreja teórica são impérvios ao debate. Qualquer diferença de opinião é interpretada como ofensa pessoal ou dissensão ideológica. A divergência equivale a crime de opinião, sendo ostracizada pelo group thinking. 
Um ciclo vicioso se fecha quando o pouco conhecimento do estado do conhecimento e das discussões teórico-metodológicas travadas na área faz com que muitos pesquisadores fiquem restritos à sua própria prática - ao seu umbigo, por assim dizer - dela derivando o seu problema de pesquisa e a ela buscando retornar com aplicações imediatas dos resultados obtidos (Alvez-Mazziotti & Gewandsznajder, 1999). O desenlace é a irrelevância de tais estudos, cuja origem é o narcisismo teórico-metodológico. Como esses estudos costumam ser restritos a uma situação muito específica com baixo nível de teorização e utilização de metodologia fraca, os resultados não podem ser generalizados. São relevantes apenas para uma comunidade de iniciados que compartilha determinados pressupostos teóricos e/ou interesses pessoais e políticos. A falta de controle da hipótese nula ou critério de adjudicação entre hipóteses concorrentes transforma tais estudos em profecias auto-realizáveis dos pressupostos prévios ou pré-conceitos dos seus autores.  Vão me dizer que isso aí não é um tipo de narcisismo dos mais brabos?
Essas me parecem ser as ameaças internas. Como se elas não bastassem, tem também as ameaças externas. Ao contrário do que a esquerda gostaria de pensaria, as universidades federais não estão ameaçadas por nenhum governo ditatorial. Só compram essa idéia os jovens incautos que não viveram outras época menos iluminadas.
A principal ameaça contra o sistema federal de universidades vem da própria sociedade. A sociedade dá mostras de cansaço de pagar impostos e receber muito pouco em troca. Como mencionei anteriormente, as universidades federais ainda gozam de grande prestígio. Mas, até quando? 
Se o pessoal discente, docente e administrativo continuar abusando, incorre-se no risco de que o pagador de impostos acabe se cansando mesmo e venha a dizer uma basta. Basta contabilizar quantos meses por ano as universidades federais ficam paralisadas por ano por uma ou outra greve. As greves são anualmente recorrentes. O efeito sobre os professores e alunos é devastador. Fica-se meses parados ou com o serviço prejudicado. Enquanto as greves duram, a vida fica suspensa. O calendário de férias é perturbado e os docentes não podem gozar das merecidas férias com seus filhos. Os formandos têm sua colação de grau atrasada, prejudicando seu lançamento na carreira profissional. Tudo isso em nome de ideologias alienígenas à sociedade, à maioria do aluna e a grande parte do professorado e funcionários.
A mais nova moda é a invasão de faculdades. Como todas as outras estratégias não funcionaram, os radicais de esquerda partiram para as medidas autoritárias e coercivas, de cercear o direito de funcionários, professores e alunos irem e virem, exercerem seu trabalho, estudarem etc. 
Já discuti muito as razões pelas quais abjuro as invasões com a maior veemência de que sou capaz. É claro que eu fico irritado. Mas estou me acalmando. Estou, cada vez mais, imerso no meu trabalho e nas minhas reflexões. Mas, não deixo de sentir pena dessa turma. Eles são uns pobres coitados que estão desprezando talvez a maior oportunidade que vão ter na vida, a oportunidade de estudar em uma universidade federal.
Com tanta gente que adoraria estudar em uma universidade federal, alguns ungidos ficam se dedicando a constranger funcionários, professores, alunos e pacientes, a fazer aulão de Foucault, oficinas de “chuca”, de “empoderamento de buceta” e de maconhagem. Estão desprezando a oportunidade de aprender de graça aquilo que lhes vai custar bem caro quando se formarem e tiverem que pagar cursos de especialização para recuperar o tempo perdido.
Não tenho muita dúvida de que o sistema de universidades federais está em risco. A população cada vez mais se revolta com o fato de que apenas uma minoria é agraciada com um ensino gratuito de qualidade. Minoria essa que muitas vezes não valoriza a chance e não corresponde às expectativas. 
Não precisa nem ser um economista neoliberal para perceber as contradições internas, inerentes ao sistema. Um motorista de táxi, p. ex., que faz ponto no campus de universidade federal pode facilmente somar dois e dois. O que aconteceria se o cidadão adotasse a seguinte linha de raciocínio: O estado inchado é totalitário, perdulário e ineficiente. O estado deve ser restringir a dispensar os serviços essenciais à população. Qual é a lista mínima dos sistemas essenciais: saúde, segurança, justiça, educação? Educação? Que serviço essencial é esse que para recorrentemente e não faz falta? Por  que o cidadão vai querer pagar por um serviço que é caro e não faz falta? 
Vamos ver alguns números. Uma universidade federal com cerca de 40000 alunos tem um orçamento anual de 1 bilhão e 500 milhões de Reais a 1 bilhão e 700 milhões de Reais. Cada aluno custa de 3000 a 3500 Reais por mês ao pagador de impostos. Cada mês parado em uma universidade federal com 40000 alunos representa um desperdício de 125 a 140 milhões de Reais por mês. Será que o cidadão brasileiro está disposto a bancar essa farra? Gente, tá na hora de parar de olhar só pro próprio umbigo. Tem um mundo fora da universidade. Ao qual nós devemos satisfação.



Referência

Alves-Mazzotti, A. J.; Gewandsznajder, F. (1999). O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira.

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